Monday, January 30, 2017

A pior das "pichações" é a publicidade



O lema Cidade Limpa do engomado João Dória é marketing de mau gosto e a sua perseguição - com todos os ares de acerto de contas - aos grafiteiros numa guerra que ele não pode ganhar é o capricho de um playboy que confunde a ocupação de um cargo público com autocracia. 

É um problema recorrente tanto desses playboys que se aventuram na política quanto dos políticos fisiológicos: não compreendem o que é um cargo representativo e julgam-se no direito de moldar a governança segundo seus caprichos tacanhos.

O trono do poder deve ser mesmo aliciante (como não recordar a denúncia certeira de Bakunin?). Quem nele senta deve sentir aquele entusiasmo incontrolável que faz parecer que tudo o que suas mãos tocarem explodirá, como sentiu o coitado do Arthur Dent ao descobrir que seu amor por Fenchurch era correspondido. 

Mas comparar o (ainda que fleumático) herói terráqueo desbravador involuntário do universo ao insosso João Dória é um desrespeito enorme a Douglas Adams, até porque Dória é um perfeito vogon. Ele não recita poesia regurgitante, mas seu ataque à arte dos grafiteiros já demonstra bem o que um sujeito elitista dotado de poder burocrático pode fazer a uma cidade real em que ele não vive. 

Mas voltando à breguice da Cidade Limpa - um termo que até tem grande coerência se for entendido como higienismo social -, é evidente que o recém-empossado prefeito paulistano não está minimamente interessado na harmonia visual da cidade que desgraçadamente o elegeu.

Ora, o sujeito é, ademais, publicitário. 

E daí? Bem, fez-me lembrar de um pequeno aspecto totalitário da paisagem das cidades: a publicidade desenfreada e parasitária que se espalha feito câncer por cada vez mais cantos conforme a criatividade dos gestores urbanos.


Haverá maior poluição visual de uma cidade que os painéis publicitários? No meio deles, grafites e meras pichações - que de certa forma são uma reivindicação provocativa do espaço público - são apenas detalhes de fundo. 

Parece-me elucidativo e sintomático que um publicitário empossado prefeito ataque tão agressivamente a arte urbana em favor das paredes cinzentas. Não me espantará minimamente se em breve essas paredes forem ocupadas com ainda mais painéis publicitários de quem pode pagar para poluir o espaço urbano.

Porque a questão se resume exatamente a isso: quem pode pagar para poluir visualmente a cidade o fará tranquilamente e com todo o apoio de munícipes. Quem não pode, será criminalizado. E ainda haverá aquela trupe de liberalóides maravilhados com tamanha sacada, porque a poluição visual regularizada enche os cofres públicos (aí o sujeito vai lá e gasta uma fortuna para apagar murais de grafite).

No totalitarismo econômico em que vivemos, é normal que a publicidade seja um nicho religiosamente protegido e visto como uma arte e uma genialidade. Na ficção de Douglas Adams, os publicitários estão fatalmente naquela nave com o terço inútil da população do planeta Golgafrincham que havia sido programada pelos Grandes Poetas do Círculo de Arium para colonizar outro planeta bem distante e insignificante (na verdade para espatifar-se contra ele e nunca mais de lá sair).

Falar em Cidade Limpa quando o apelo ao consumismo predatório e alienante polui cada metro quadrado possível só nos faz pensar que o termo é realmente uma referência ao higienismo elitista. 

As cidades são ambientes cada vez mais embrutecedores e alienantes. Têm sido selvas totalitárias onde o consumismo e o egoísmo imperam. Os corredores do poder fabricam gestores públicos bem enquadrados nessa lógica. Alguns são mais narcisistas, outros mais burocráticos. Quase nenhum sabe o que é a cidade real e quase todos têm uma perspectiva a partir das suas bolhas. No final, cumprem o papel de garantir o espaço urbano a quem pode pagar para utilizá-lo, por mais que seja uma utilização perniciosa ou que em nada o enriqueça culturalmente.

A lógica da cidade sequestrada pelos interesses das elites é bem clara:

Quer poluir a cidade? Pague para isso. Sua poluição será chamada de arte e você de empreendedor. Não tem dinheiro para pagar? Sua arte será chamada de poluição e você de criminoso. 

A arte popular é relegada à marginalidade. Mas assim ela também se desdomestica e se torna desafiante. E é assim mesmo que ela tem de ser: livre, rebelde e perigosa. Tem de questionar, atrapalhar e reivindicar. Tem de desafiar o poder e nunca se atrelar a ele.

Os prefeitos passam e seus caprichos também. A arte é atemporal. 

Um dia escrevi um poema a um músico de rua tcheco que apesar da avançada idade não se cansava de tocar seu saxofone e seu trombone na praça principal do centro histórico de Praga em meio a todo o ruído do turismo plastificado. Apesar de se tratar de uma manifestação artística distinta, dedico o poema aos grafiteiros, porque a luta é a mesma:

Passam transeuntes
E turistas varridos
Passa a brisa
E o olhar dos mendigos
Passam cavalos
E seu ar de martírio
E as gentes esnobes
Que desfilam delírio
As notas ecoam
E invadem ouvidos
Que se fazem ajustados
Os mais providos
Cada sopro é um esforço
Um grito de alívio
Que esbugalha os olhos
E faz tremer os cambitos
Passam os carros
Seus roncos poluídos
Que lhe ofuscam as notas
Mas não lhe tiram o brilho
Passam as modas
A chuva, a neve e o frio
Passa o verão
Esmorece-se o brio
E passam os anos
E renova-se a vista
Mas no coração da cidade
Nunca passa o artista.

1 comment:

  1. "A arte popular é relegada à marginalidade. Mas assim ela também se desdomestica e se torna desafiante. E é assim mesmo que ela tem de ser: livre, rebelde e perigosa. Tem de questionar, atrapalhar e reivindicar. Tem de desafiar o poder e nunca se atrelar a ele."
    Tanta razão querido Julian. Gosto sempre de te ler.
    Um beijinho grande destes lados

    ReplyDelete