Wednesday, December 28, 2016

Manifesto sobre o estado físico da matéria II - A santíssima trindade


Um dos muitos motivos da minha inadaptabilidade a esta sociedade é o fato de eu não conseguir lidar com dinheiro e competição. Sou, sem exageros, um zero à esquerda cheio de casas decimais zeradas depois da vírgula. A minha incompetência nesta lide seria de uma singularidade assombrosa mesmo em ambientes de relações sociais desmonetarizadas, porque os meus mecanismos de competição - se é que os possuo integralmente operacionais - sofrem de uma crise moral crônica que emerge cada vez que participo de algum tipo de negociação. 

Por outras palavras, eu simplesmente não sei ganhar dinheiro. E quem não sabe ganhar dinheiro nesta sociedade que venera a santíssima trindade formada pelo Trabalho, pela Produtividade e pelo Consumismo é um idiota inútil, relegado à sarjeta e ao ostracismo enquanto os idiotas úteis, como economistas, gestores, investidores e advogados, além de uma casta dita menos nobre de profissionais liberais patéticos mas não menos idiotas úteis, desfilam pelas trincheiras reluzentes da vanguarda do progresso

Num mundo organizado para ludibriar os que aceitam o sacrifício laboral como grande virtude da humanidade sujeitando-se passivamente à sua engrenagem em busca das pequenas ilusões compensatórias, a maior maldição é não ser um idiota útil. Há um discernimento adquirido pela observação e questionamento dos valores vigentes que reforça a maldição, embora eu esteja quase convencido de que no meu caso ela seja substancialmente inata. Minha incompetência para competir impiedosamente e organizar a vida em torno de objetivos materialistas não filosóficos remonta aos primórdios da minha existência.

A questão não é apenas aceitar submeter-me a ocupações insatisfatórias sob as ordens de um idiota útil (em comunidades saudáveis, esclarecidas e solidárias, essa chantagem seria considerada a pior das afrontas e não uma convenção negocial perfeitamente banalizada). Trocar tempo e esforço - físico ou intelectual - por dinheiro não me faz todo esse sentido que os senhores da nossa cultura vendem como filosofia moderna e até como ciência, mas o próprio impulso fulcral de toda essa engrenagem, que pode ser traduzido como o seu prejuízo é o meu benefício e a sua desgraça é a minha redenção, logo farei tudo para que você seja prejudicado e desgraçado, é para mim abjeto e insuportável. Como vivo dentro da sociedade, é impossível não fazer dele uso ocasional, às vezes involuntariamente, outras para prevalecer num cenário adverso, num momento de fraqueza. Mas como estilo de vida, como postura prática arraigada a preceitos ideológicos, é tudo aquilo que deve ser combatido com afinco.

Nunca consegui estar acostumado à concertação das relações laborais, embora esteja sujeito a ela como todos os outros cidadãos economicamente dependentes (leia-se não milionários). Noutro dia, numa conversa descontraída com uma amiga enquanto tomávamos o último banho de sol do ano antes do inverno desabar sobre nós, informei-lhe de que a gerente de um estabelecimento em que costumo laborar em turnos madrugadeiros me pedira para fazer a noite do Reveillón e que eu lhe havia respondido positivamente (dos tradicionais festejos de fim de ano, a única coisa que eu quero é que Janeiro não se atrase mais do que o costume). A minha amiga compreendeu a decisão de imediato, dizendo que por uma boa quantia valeria a pena. Mas a conversa via sms com a gerente não contemplara em momento algum valores e sequer passara-me pela cabeça falar disso. Ela me aconselhou a cobrar o que costuma ser o valor normal de uma jornada na noite de Reveillón, que corresponderá a uma multiplicação do montante que recebo por jornada.

Não sei como ela, uma pessoa relativamente tímida, faria para abordar a questão. Eu, uma pessoa relativamente não tímida (ou um relativamente bom ator), não tenho a mínima ideia. O desconforto que me aflige só de pensar nisso é manifesto. A ideia de trabalhar apenas por dinheiro é desoladora. Tenho formação acadêmica em ciências geográficas, pelo que se quisesse empanturrar-me de dinheiro, já que eu até tinha algum jeito, bastaria deixar-me seduzir pelo mercado de trabalho onde a minha área de formação tem peso (mas a minha sensibilidade não está para o mercado da mesma forma que a sua neura não está para os meus caprichos humanistas anti-mercantilistas). Exigir dinheiro nunca foi índole minha. Mas ser idiota útil também não. E trabalhar passivamente sem exigir direitos é coisa de idiotas ainda mais úteis do que quem trabalha exigindo-os ativamente.

O mais habitual em situações dessas é ser prudente sem se deixar ludibriar, estando, para todos os efeitos, idiota útil sem no entanto deixar de ser idiota inútil (uma das maravilhas da língua portuguesa é ter um verbo para uma condição temporal e outro para uma condição permanente). Na verdade, eu aceitaria estar idiota útil por muito tempo naquele estabelecimento, porque apraz-me o seu ambiente multicultural e nele tenho a oportunidade de evitar o fastio lendo, escrevendo e editando fotografias. Todos temos de exigir nossos direitos e eles contemplam um salário digno e condizente, mas são as convenções responsáveis pela hierarquização do trabalho com base na propriedade que devem ser confrontadas se queremos cortar o mal pela raiz e não apenas aparar galhos, ampliando, assim, o nosso sacrifício como mártires da engrenagem. Onde quero chegar, meus caros idiotas úteis ou inúteis, é que a noção capitalista de trabalho é um esterco intragável exatamente como as outras duas divindades da santíssima trindade.

Aliás, esterco nada; merda mesmo, sem falsa diplomacia. Uma merda fedorenta. Por meio dessa santíssima trindade a sociedade disseminou doenças psicológicas degenerativas de mentes e incapacitantes de corpos. Sobre ela estão estruturadas indústrias perniciosas como a farmacêutica e como as terapias, especialmente as místicas. Nela se alimenta a indústria do entretenimento e suas drogas psicotrópicas alienantes, como futebol, programas de auditório e novelas. Aliás, como todo o conteúdo das diversas emissoras de televisão. E isto para não desnortear o texto do tema, porque as indústrias do armamento, do petróleo e das novas tecnologias acenam mandando lembranças.

Tenho considerado o pior tipo de pessoa aquela que, numa situação de discussão, discórdia ou antagonismo (seja ideológico, seja de qualquer outra ordem), utiliza-se de um pomposo vá trabalhar como cartada final argumentativa recheada de pretensa superioridade moral. Se eu fosse uma pessoa fria ou se tivesse desistido totalmente da redenção humana, teria sempre na ponta da língua um vá trabalhar você, idiota útil, se acha que o trabalho liberta ou dignifica. Escravize-se ainda mais do que já é escravizado, ultrapasse largamente - de bom grado e sorridente - o limite da jornada diária. Embruteça-se numa vida enfadonha, desperdiçada numa função sem sentido para que o patrão (ou o patrão do patrão, ou o patrão do patrão do patrão) possa desfrutar de uma vida que você nunca terá. Para compensar, afunde-se nas drogas pesadas do entretenimento lobotômico até morrer no esquecimento após jamais ter de fato vivido.

Como não sou frio e nem desisti totalmente da redenção humana, continuo sendo apenas rabugento, alternando picos de impaciência catártica com ondulações de assinalável fleuma. E digo tudo aquilo de forma, digamos, mais subliminar.

Se não há como eu combater definitivamente a santíssima trindade, também ela não me conseguirá seduzir. Contra a sua sedução traiçoeira interponho a virtude da arte. Mas quando digo que abomino o trabalho, refiro-me à sua concepção como elemento da santíssima trindade da religião capitalista. A palavra encerra valores tão abomináveis que me nego a utilizá-la para designar atividades positivas e destacadamente sublimes. A minha arte, que é uma criação e não uma produção (eis outra palavra abominável dentro do contexto dessa religião), teria tudo para ser considerada trabalho. Mas não o é por dois motivos: 1) eu não quero que seja, 2) eu não tenho conseguido adquirir nada próximo à independência econômica por meio dela. E tudo o que não seja trocado por uma quantia de dinheiro que permita a existência insossa num patamar intermediário entre a indigência e a riqueza não é considerado trabalho, mas lazer, hobby ou qualquer outra palavrinha mais açucarada. Trabalho, trabalho mesmo, só para os assalariados, para que continuem sendo nem mais nem menos que peças da engrenagem. Os ricos que trabalham como pobres são ainda mais idiotas úteis ou sofrem de um nível de alienação ainda mais tétrico. Mas um rico que não trabalha e vive tranquilamente uma fábula colorida às custas de assalariados é um sociopata.

Então, qual é a solução? Ou ficar rico honestamente sem usufruir do prejuízo e da desgraça (e do suor) de ninguém, o que é praticamente impossível, ou fugir da sociedade. A segunda opção não é só possível como recomendável para quem quer livrar-se de vícios e doenças psicológicas e tentar alcançar a plenitude da existência. A primeira talvez possa ser alcançada por meio de formas menos execráveis ou que ao menos não tenham uma afetação negativa direta sobre outras pessoas. Ganhar na loteria talvez seja um exemplo disso, embora as lotéricas sejam geridas pelo que há de pior e mais ganancioso na religião capitalista (a proprietária do jogo da sorte em Portugal é a Santa Casa de Misericórdia, uma total não surpresa). Eu penso sempre em alguma das minhas criações. Adquirir independência econômica pela arte seria radiante. Mas e a ardilosamente vampiresca indústria artística? E as editoras mafiosas e seus chorudos esquemas de controle de direitos autorais?

Não adianta. Quem está na chuva se molha invariavelmente. Quem vive dentro da sociedade não conseguirá ascender sem utilizar o seu semelhante como degrau. Mas não ser trapaceiro ou oportunista, não conjurar contra o próximo, não dificultar relações nem infestar ambientes e não utilizar-se daquele jeitinho de sorrateiramente retirar benefícios do prejuízo alheio já será um esboço mais dignificante. Ou pelo menos será uma forma - ainda que aparentemente estéril e inconsequente - de desafiar o embrutecimento. Sobretudo será uma forma de não servir arregimentadamente à ideologia da engrenagem. Porque ela ordena que sejamos impiedosos na escalada em busca dos seus próprios anseios, induzidos como nossos, mas cada vez que contrariamos o padrão de comportamento nos transformamos em pequenas ferramentas sabotadoras. Bem encravadas na engrenagem podem até gerar consideráveis anomalias.

Um artista genuíno nunca será um trabalhador e sua arte nunca será trabalho. Mas deixem-me falar apenas por mim que é menos problemático. Eu não escrevo ou fotografo conforme expectativas de mercado. A música da banda que eu gostaria de ter não atenderia aos anseios da indústria fonográfica. Minha criação artística é por essência marginal e subversiva, e representa no seu âmago tudo o que a santíssima trindade despreza. A reciprocidade, notem, existe e é orgulhosamente salientada. 

Costumo ficar entre dez e catorze horas por dias - às vezes mais - concentrado na criação e aperfeiçoamento da minha arte. Faço-o voluntariamente por puro prazer, sem qualquer tipo de obrigação e sem sentir-me contrariado. Para burocratas e tecnocratas da engrenagem, sou um vagabundo. Talvez o que eles não consigam suportar seja o fato de eu desenvolver uma atividade satisfatoriamente, sem ter a individualidade e a personalidade desintegradas e sem ser lobotomizado, embrutecido, robotizado e transformado em uma peça sua desprovida de humanidade. Talvez por eu ser um coração que bate e sente e não um par de ouvidos que obedece ordens e de coniventes olhos que convenientemente não enxergam.

Eu sou um artista genuíno! Consequentemente - salvo as raríssimas exceções que confirmam a regra, embora eu não me recorde de nenhuma -, não sou economicamente independente. Faço arte por amor, prazer, entusiasmo, deleite e satisfação. Faço arte pela arte. Para desafiar apaixonadamente a inefabilidade da vida. Há mais de dez anos escrevi um poema apologista da pirataria que infelizmente seria engolido para sempre por um antigo computador antes do seu derradeiro pígarro. Mas alguns versos a minha memória logrou resgatar:

Fazer pirataria
É fazer arte
Arte contra o lucro
Arte pela arte
Subvertendo um produto morto
E devolvendo-lhe a vida
Voltando a ser arte
Nem embalada
Nem consumida

Sou um artista que cria, mas, por não ser um assalariado que produz, chamam-me vagabundo. Como ser vagabundo parece-me melhor do que ser idiota útil, aceito a ofensa como elogio. Sou um vagabundo criativo e vivo. Não sou uma carcaça moribunda como a de muitos não vagabundos. Antes de motivar qualquer arroubo de orgulho, essa é uma condição seminal, obrigatória no meu compromisso com a vida.

Por fim, uma palavra aos artistas e intelectuais religiosamente atrelados à santíssima trindade:

A arte é uma expressão sublime da capacidade perceptiva humana. Sua utilidade para fins embrutecedores e para a manutenção da engrenagem é uma contradição grotesca e um atentado à sua dignidade. 

A intelectualidade é um mecanismo pelo qual podemos discernir o mundo. Sua utilidade para perpetuar a encenação da desumanização é uma traição à sua própria função e uma das maiores indecências de que a nossa espécie é capaz.

Saudações a todos os artistas e intelectuais comprometidos com a heresia de rebelar-se contra a santíssima trindade e a todos os idiotas inúteis que, à sua maneira, resistem e criam anomalias.



Clique aqui para ler o Manifesto Sobre O Estado Físico Da Matéria I.

Monday, December 26, 2016

6 x 9 = 42


Um número considerável de pessoas que leram a trilogia de cinco livros de Douglas Adams, O Guia Do Mochileiro Das Galáxias, tem a sua própria teoria acerca do número 42. Não que eu esteja obcecado com isto, mas me tenho flagrado no exercício de encontrar uma explicação plausível para o dilema, se é que há algum.


E foi assim que curiosamente percebi durante as minhas divagações ociosas que 42, que é a resposta que, na obra, um supercomputador projetado exatamente para isso encontrou para a vida, o universo e tudo mais, cuja pergunta fundamental não se sabe qual seria*, também é o número de vezes que uma folha de papel precisa ser dobrada para em função do crescimento exponencial chegar à Lua. 


Ademais, no segundo livro da trilogia, O Restaurante No Fim Do Universo, as personagens Arthur Dent e Ford Prefect encontram, por meio de um jogo de letras baralhadas nas florestas de Flintevudlevix (ou a Terra primitiva, recuada no passado dois milhões de anos e que no presente natural já não existia - fora pulverizada para dar passagem a uma autoestrada espacial), após terem visto, atônitos, um nativo formar a frase quarenta e dois com elas, a seguinte pergunta: "qual é o resultado de seis vezes nove?"


"Seis vezes nove. Quarenta e dois." - é tudo o que dizem. Não é inequívoco que eles assumem o resultado como correto. Contudo, também não o é que o assumem como errado. Alguns leitores da obra sugeriram que o cálculo fora feito pelo autor em base 13, embora o próprio pareça ter desmentido tal hipótese.


Continuei divagando até que também percebi, meio que por acidente e para meu total espanto, que o resultado de 6 vezes 9 é 54. Até aí não há nada de aparentemente intrigante. Mas e se eu disser que 54 é o resultado da soma de 1, 2, 3, 6, 7, 14 e 21...


...e que esses são exatamente os divisores próprios de 42, fazendo dele um número abundante?


No início, com a descoberta do número 42 tanto no livro como no crescimento exponencial de um papel para chegar à lua, achei que fosse apenas uma divertida coincidência. Mas com a relação do número 54 com 42 através dos seus divisores, fica muito difícil acreditar que não seja uma das muitas maluquices bizarras inventadas pela exótica genialidade de Douglas Adams. O que o terá levado a decidir-se por isso eu não sei, mas comecei a achar que talvez haja mais peças para montar nesse quebra-cabeça


Pergunto-me se alguém nesta galáxia também terá chegado a essa relação entre 42 e 54 ou se serei o único maluco.


No momento encontro-me lendo o quarto livro. Talvez ao fim dos cinco eu consiga encontrar mais algumas peças. Também é provável que não. 


Pode ser, entretanto, que já haja alguma resposta para o enigma. Se não no quarto (Até Mais, E Obrigado Pelos Peixes) ou no quinto (Praticamente Inofensiva), talvez no considerado sexto livro, escrito por Eoin Colfer e intitulado E Tem Outra Coisa, ou no Não Entre Em Pânico de Neil Gaiman, ou no blogue de algum nerd nos confins da maré virtual. 


Mas, seja como for, tomei a questão como desafio pessoal e não quero que a resposta, caso haja alguma, me caia de bandeja. Terá de ser eu a encontrá-la. Ou a não encontrá-la.




* No terceiro livro, A Vida, O Universo E Tudo Mais, a personagem Prak garante, antes de morrer, que a Pergunta e a Resposta são mutuamente excludentes e que por lógica o conhecimento de uma impede o conhecimento da outra, sendo impossível que ambas sejam conhecidas no mesmo universo.


Tuesday, December 20, 2016

Neste Natal, esqueça-me


Entra ano, sai ano, e minha busca por algo que seja mais deprimente e patético que o Natal segue em vão. Não encontro nada. Não existe nada. O Natal é soberano no reino da mediocridade; é o grande pináculo de uma sociedade viciada em comportamentos perniciosos, escrava do consumismo e cada vez mais desprovida de valores afetivos.

Cada vez que um amigo me deseja o que podemos sintetizar num genérico Feliz Natal, que também poderia ser traduzido como nossa amizade é fútil e superficial, eu não tenho efetivamente nada para te dizer e para ser sincero não me importo minimamente contigo, mas remeto-te este voto que não passa de um clichê descarado porque é simplesmente o que todos fazem nesta altura do ano, embora ele não signifique absolutamente nada além de falsidade, eu fervo feito uma montanha piromaníaca assassina, como aquela que dizimou Pompeia. 

Insisto que não me incluam em círculos de dissimulação. Insisto que não me convidem para celebrações. Insisto que não me deem prendas porque não as retribuo. E as pessoas insistem em fazer tudo isso - ou quase tudo isso, porque as prendas, confesso, são escassas -, sempre cheias de uma simpatia imediata surgida aparentemente do nada. Entra ano, sai ano, e sou obrigado a retribuir sorrisos forçados e a implodir meus sinceros desejos de insultar a todos. Alguns pensam que a ojeriza que sinto do Natal é apenas um capricho, uma forma apelativa de ser do contra, como se o Natal fosse realmente tão encantador que não pudesse existir um real sentimento de repulsa contra ele. A alienação faz estragos maravilhosos nos que não querem ver as coisas como elas são; exime-os de inconveniências, como, por exemplo, a lucidez. Ou como a realidade, e por isso o Natal tem todo esse cenário mágico, onírico, onde todos fingem estar transformados no que há de melhor na espécie humana.

Mas a verdade verdadeira é que simplesmente odeio o Natal com toda a força que minhas entranhas odiosas conseguem odiar. A começar pelas luzes deprimentes que infelizmente fazem parte da tradição natalícia. Todas aquelas bolinhas coloridas extremamente idiotas e parolas, que transformam a cidade numa gigantesca máquina de hipnotização de hordas de zombies consumistas e famílias vulgares. Certamente essas luzes não provêm de fontes ecologicamente responsáveis e configuram um desperdício tolerável por causa da tradição. Luzes que brilham o brilho que nós não conseguimos reluzir em nossas vidas opacas de seres humanos desumanizados. Luzes que ofuscam todo o nosso egoísmo e toda a nossa maldade. Luzes que colorem vidas cinzentas e que nos tentam convencer de que apesar de todos os vícios nefastos com que atravessamos mais um ano absolutamente sem sentido em nossa existência enquanto funcionários funcionais e peças acéfalas de uma engrenagem trucidante, tudo será maravilhoso se nos deixarmos levar pela onda de falsidade e de hipocrisia, se gastarmos cada moeda de nosso ridículo soldo de peça acéfala em futilidades materiais que nos são impingidas por todos os lados, mescladas com ainda mais luzes e ainda mais mensagens fofinhas totalmente vazias, num vexatório festival de sincretismo religioso e materialismo totalitário, para com elas preenchermos as imensas e dolorosas lacunas de nossas vidas e para oferecermos, a quem julgamos merecer, como substituto de afetos que não conseguimos demonstrar ou por inexistência dos mesmos, ou por incompetência. Ou simplesmente por falta de tempo. 

E não me venham dizer que sou demasiado amargurado. Não é virtude fazer parte de uma festividade que forja (e tenta encenar) sentimentos sem no entanto os manifestar de fato e que está assente em enfermidades sociais.

Mas reconheço que o Natal tenha realmente sua função. Não, ela não é pregar amor, amizade, fraternidade e essas balelas. Ninguém está minimamente preocupado com isso - o Natal é, efetivamente, o ápice de todo o egoísmo que a sociedade desenvolve em cada um de nós. E também não é unir a família; a maior parte das pessoas que conheço é obrigada - por ela, por si mesma ou pelas convenções - a unir-se a banquetes familiares particularmente deprimentes e preferiria, sem sombra de dúvidas, aderir à orgia mais próxima, mesmo que fosse uma orgia de quiabos gosmentos. A grande função do Natal, que faz com que ele seja justificado até para mim, é evidenciar tudo o que temos de pior. É o grande palco de nossas vidas encenadas, onde vemos passar diante de nossos cínicos olhos, em meio às luzes deprimentes, toda a podridão que se espalha à nossa volta e da qual fazemos parte inequivocamente com assinalável contributo. Poucas pessoas a vêem, é verdade, afinal a grande maioria se deixa entorpecer pelas luzes, pelos sorrisos amarelos e pelas mensagens fofinhas e nauseantes de consumismo.

Sair à rua em Dezembro é algo que eu costumo evitar, mas nem sempre com sucesso. Na cidade do Porto o fenômeno da gentrificação e da transformação do espaço urbano central num parque de diversões hipster para turismo plastificado se incrementa consideravelmente com multidões de carcaças de capacidade racional condicionada e duvidosa deambulando para todos os lados com sacolas nas mãos, assediando montras, entupindo lojas, esmagando-se em vagões do metro como palitos de fósforos em suas caixas, poluindo a atmosfera com alegria alienante expressa em sorrisos mais falsos que o amor entre uma top model e um jogador de futebol. Famílias inteiras tentando fingir que se toleram e à procura de um sentido que não encontram no resto do ano. Procuram esse sentido em compras, em luzes idiotas e em tradições parolas. Entra ano, sai ano, sempre vazios e insatisfatórios, e todos renovam suas cargas de mediocridade, hipocrisia e falsidade em Dezembro. Em Janeiro - quando muito -, toda essa baboseira de espírito natalício já foi devidamente engavetada para o próximo Dezembro, embora ela nunca seja de fato utilizada em Dezembro algum. Pergunte a quem despreza o sem-abrigo com toda a frieza do inverno. Pergunte a quem buzina e insulta no trânsito, a quem não oferece assento ao velhinho ou a uma pessoa sobrecarregada no transporte público. Pergunte a quem acha que o nariz existe para ser empinado ou a quem se considera a última bolacha do pacote. A quem, de dentro de uma existência moribunda, só consegue reproduzir o que já existe à volta. 

Pergunte a quem durante todo o ano se limitou a ser apenas mais um. A quem se satisfez mergulhado na desvirtude, na inversão de valores afetivos. Pergunte a quem traiu o melhor amigo, a quem se ergueu pela mentira e se relacionou por conveniência. Pergunte a quem se utilizou de máscaras sociais para galgar na disputa pela aceitação. 

Pergunte a quem vai ao talho cheio de espírito natalício mais próximo comprar um pedaço ou o corpo inteiro de um animal que foi brutalmente torturado, morto e esquartejado num matadouro também cheio de espírito natalício para que, cheio de espírito natalício, o possa mastigar em sua ceia pacífica em meio a votos de compaixão. Ou a quem ao ler este parágrafo ache a crítica exagerada e radical, porque afinal não há nada de errado e repugnante em torturar, matar e esquartejar brutalmente para vender como comida suculenta qualquer animal que não seja de uma espécie à qual por convenção cultural decidimos que é errado e repugnante torturar, matar e esquartejar brutalmente para vender como comida suculenta.

Pergunte a quem não é capaz de mover uma única vírgula em favor de algo que não seja o próprio umbigo. Pergunte a quem terá o cinismo de enviar aquela mensagem simpática de fim de ano a alguém de quem não se lembra há meses ou mesmo anos. 

Pergunte a si mesmo.

Você que irá fatalmente remeter-me uma mensagem bonitinha e fofinha de Natal, achando que assim poderá respirar a frescura da sensação de ser um bom amigo, enquanto meu estômago dá voltas e eu controlo-me para não responder com um regurgito de ácidas palavras gongóricas.

E também pergunte por que motivo deveríamos celebrar esta tradição. Sobretudo, por que motivo somos merecedores dela enquanto espécie de purgatório invariavelmente redentor. Ilusões à parte, somos todos tristes figuras patéticas, parte de um mecanismo podre. E o Natal é apenas o ápice do processo de embrutecimento. Compreendo que a grande maioria das pessoas precise encenar. É um atalho para escapar à fustigante realidade. Particularmente, não caibo na encenação. Ela é cada vez mais sufocante e representa tudo o que mais desprezo.

Se você se considera meu amigo ou acha que por algum motivo mereço respeito, é sua obrigação esquecer-me neste Natal e em todos os outros.


Thursday, December 8, 2016

Os 20 álbuns de 2016


Recentemente adquiri o costume de elaborar uma lista anual dos vinte álbuns mais ouvidos por mim. Este deve ser o quinto ou o sexto ano consecutivo em que o faço. Os motivos são dois: uma mera sugestão musical e uma análise da variação do que escuto. De certa forma, essa variação é uma representação da modernidade líquida. Explico: de tempo em tempo, a música que ouço varia tão drasticamente em artistas e gêneros que indica por si só a instabilidade, ou a liquidez, da minha vida, admitindo aqui que meu gosto musical obedece não apenas à apreciação artística mas também, em grande medida, ao meu estado de espírito. Sou daqueles que criam trilhas sonoras para cada cena do filme da vida. Além disso, atualmente é tão fácil o acesso a qualquer tipo de música que o acúmulo de material fonográfico disponível em nossos meios digitais de armazenamento de áudio causa uma enorme confusão e sobreposição. Há muito mais música do que tempo para a ouvir. Antes, quando o mundo era mais sólido, ocorria talvez o contrário: pouca música para mais tempo, o que nos fazia repetir à exaustão os poucos exemplares físicos que tínhamos, decorando-os profundamente do começo ao fim.

Por que vinte e não dez ou trinta? Não sei. Acostumei-me assim. Talvez vinte seja a medida certa entre a limitação e a abrangência (se não houver limitação perde-se a relevância dos álbuns incluídos e se não houver abrangência o ano fica mal representado, porque em 365 dias muitos sons passam pelos meus ouvidos). Ou talvez seja apenas o meu subconsciente resgatando do passado um já distante período em que, sem Internet, eu me iniciava no mundo da música e assistia aos fins de semana ao Top 20 da MTV Brasil à espera de um mísero videoclip que destoasse de todo o lixo. 

Como sempre, a lista mostra como me reinvento enquanto apreciador de música, resgatando velhas paixões e descobrindo novas. É sempre com certo espanto que reajo ao meu interesse súbito por álbuns antigos dos quais nunca suspeitei que um dia me pudessem seduzir. "Ponho-me a ouvir cada coisa,,,", penso. E quando digo ouvir, refiro-me a um cuidadoso processo de captação de percepções, ambiências, técnicas e intencionalidades. Não é apenas romper um silêncio incomodativo. Um álbum só entra em minha lista após ser vasculhado, examinado e digerido. Tento adicionar apenas um por artista ou banda e a ordem obedece ao impacto causado em mim e à durabilidade da relação, mas ela não é tão importante.

Todos os anos tenho dito o que vou dizer agora: 2016 foi o meu ano mais eclético. 


1) Da Lama Ao Caos - Chico Science & Nação Zumbi (Brasil - 1994)

2) Singelos Confrontos - Flicts (Brasil - 2013)

3) Acerto de Contas - Paulo Vanzolini (Brasil - 2002)

4) Samba Esquema Noise - Mundo Livre S/A (Brasil - 1994)

5) Alucinação - Belchior (Brasil - 1976)

6) Lua Bonita - Socorro Lira (Brasil - 2011)

7) Mundialmente Anônimo: O Magnético Sangramento da Existência - Maquinado (Brasil - 2010)

8) Vinograd - Dobranotch (Rússia - 2014)

9) Do Romance Ao Galope Nordestino - Quinteto Armonial (Brasil - 1974)

10) Estado De Poesia - Chico César (Brasil - 2015)

11) Dividir e Conquistar - Dorsal Atlântica (Brasil - 1988)

12) Convoque Seu Buda - Criolo (Brasil - 2014)

13) Hear Nothing, See Nothing, Say Nothing - Discharge (Reino Unido - 1982)

14) A Love of Shared Disasters - Crippled Black Phoenix (Reino Unido - 2007)

15) We Rock You Suck - Muzzarelas (Brasil - 2010)

16) Entre - Kamau (Brasil - 2012)

17) Braza - Braza (Brasil - 2015)

18) Nº I, II, III & IV - Beatles'n'Choro (Brasil - 2002-2005)

19) Pappo Y Amigos - Pappo (Argentina - 2000)

20) My Mind Is A Mess - Orgasmo de Porco (Brasil - 2013)



Com a lista, percebo, meio atônito, que em 2016 quase só ouvi música brasileira. Eu não tinha ideia de sua esmagadora predominância e fiquei embasbacado. Nunca antes estive tão ligado à música tupiniquim. Dos vinte álbuns, apenas quatro não são brasileiros (dois britânicos, um russo e um argentino). Ademais, este foi o ano do meu regresso ao Nordeste e em que o Manguebeat finalmente me conquistou. Outra novidade é a inclusão de dois álbuns de hip hop, depois de muitos anos sem ouvir nada do gênero.

Como ainda faltam alguns dias para 2016 finalmente acabar (vai deixar pouquíssimas saudades, senão nenhuma), não excluo a possibilidade de alterar a lista. Estou sempre ouvindo de tudo e pode ser que algum álbum que me esteja escapando ainda se me revele a tempo. Ou então ficará para 2017, que decerto terá uma lista distinta. Tenho o hábito de guardar em meus favoritos do Youtube álbuns inteiros para não os esquecer antes de lhes dedicar a devida atenção. Neste momento tenho acumulado umas boas dezenas e, pelo que me pareceu depois de uma breve conferida, 2017 poderá ter uma certa tendência experimental, instrumenal e psicodélica, bem como reforçar ainda mais o meu regresso ao Nordeste. Mas é também possível que essa tendência não se manifeste e surja outra, embora neste momento eu nem consiga imaginar qual poderia ser.

Claro que há álbuns atemporais aos quais ouço com tanta frequência há já tantos anos que não faz muito sentido serem levados em conta para a lista anual. Exemplos disso são o Division Bell de Pink Floyd ou as discografias de Legião Urbana, Raul Seixas, Enya, Crass e Cólera. A lista é montada tendo em conta a sensação de descoberta ou redescoberta

Por fim, deixo uma sugestão baseada nela: vasculhem o Manguebeat. Não apenas os grandes ícones do gênero, mas toda a envolvência, tudo o que surgiu a partir deles e passou a orbitar a mixórdia estruturada na música pernambucana. 

Aliás, vasculhem também o cinema pernambucano.

Ô terrinha que gosta de uma boa arte...


Sunday, December 4, 2016

Manifesto sobre o estado físico da matéria


A Etimologia poderá ser considerada o mais fascinante dos campos que constituem a gramática. A profundidade e a abrangência de um estudo que une a história humana e a evolução dos seus vocábulos são praticamente infinitas face à nossa fugaz escala de tempo. Através dela, podemos ir em busca do significado que nos escapa de palavras tão triviais quanto misteriosas. Podemos, inclusive, vasculhar os nossos próprios nomes. A constatação de termos à disposição um significado primordial e totalmente inesperado para cada uma das milhares de palavras que compõem o nosso léxico talvez nos indique coerência e certa segurança no percurso das diversas gerações de ancestrais que, de bastão em bastão, nos entregaram o rumo da história.

Uma noção que podemos discernir da Etimologia, portanto, é a de elementos concretos na formação do conhecimento humano. Concreto é uma palavra que em nosso entendimento intuitivo sugere solidez, cuja aplicabilidade, por sua vez, varia mas quase sempre representa a mais básica compreensão de um estado físico. Nas generalistas aulas de ciências do ensino primário e secundário aprendemos que além do sólido, a matéria pode apresentar os estados líquido e gasoso. Mas estejam tranquilos, porque a física não tem nenhuma importância neste manifesto senão a aplicação metafórica de alguns dos seus termos. Isto é um esboço inerente à Sociologia; apesar de todo o desdém que tem sofrido ao longo dos últimos anos, ela ainda é muito mais inquietante que qualquer equação.

Façamos um pequeno recuo no tempo pelas mais elementares páginas da história. Se tivermos de utilizar terminologia física para caracterizar a vida dos nossos pais e avós, de que palavra nos serviríamos? Aliás, dentro de todo o nosso léxico, que palavra melhor se adequaria? Ocorre-me apenas uma: o mundo dos nossos pais, por assim dizer, foi um mundo sólido, assente em convenções sociais rígidas e relações afetivas praticamente imutáveis. Perspectivas de pertença, família, emprego, lazer, aptidão e sociabilidade eram perfeitamente identificáveis e mantidas preservadas por toda a vida. Era comum os filhos seguirem os passos dos pais. Era comum famílias conjurarem uniões matrimoniais. Eram comuns os laços de vizinhança. Tradição, provincianismo e conservadorismo foram conceitos edificados por essa vida arraigada à noção de estabilidade e invariabilidade, incluindo a rigidez da constituição classista da sociedade, pouco permeável à inter-transitação. Foi um mundo que garantiu certezas, mas às custas da castração das aspirações individuais. Um mundo ultrapassado e indesejável. Um mundo em estado sólido.

Nas últimas décadas, no entanto, outro mundo se formou da dinâmica relacional humana. Um mundo no qual nem todos das presentes gerações cresceram, mas que inevitavelmente nos tem obrigado a uma dramática adaptação. Este mundo configura a mais abrupta ruptura com a solidez do passado, assumindo em toda sua instabilidade e transformabilidade um novo estado físico: a liquidez. Zygmunt Bauman, o célebre e quase centenário sociológico polonês, deu a este mundo uma acuradíssima designação: modernidade líquida. Longe de pretensiosismos em relação ao seu profundo conhecimento, permito-me sugerir um outro termo, nem melhor, nem alternativo ao de Bauman, apenas adicional e talvez complementar: imediatismo mágico. A vida se nos escapa por entre os dedos e se metamorfa a cada segundo conforme novas camadas que se vão acumulando umas sobre as outras tão apressadamente que impossibilitam o funcionamento do nosso organismo dentro dos seus padrões rítmicos. É um mundo que se transforma sem prestar contas ou oferecer entendimento, como aquele almoço que devoramos rapidamente em virtude de alguma pressa rotineira e que nos empanturra sem no entanto o digerirmos. O mundo atual é um espevitado, porém metódico exercício de indigestão. Não por ser a desgraça que é do ponto de vista humanístico, mas por girar muito além do ritmo biológico do nosso sistema digestivo mental. Não há cérebro que acompanhe a velocidade das informações, vivências e relações que a modernidade líquida (ou imediatismo mágico) oferece. Quem nunca teve um momento de sensibilidade, como se o tempo desacelerasse só para si, para perceber a expressão de indigestão no rosto das carcaças de uma repartição pública ou de um vagão de metro? Quem nunca sentiu a multidão à sua volta deambulando caoticamente, aparentemente sem destino e demasiado acelerada? Quem nunca teve espasmos de mora? Numa sociedade que produz cotidianos insatisfatórios em vidas homogeneizadas, talvez apenas os mais embrutecidos não questionem, nem uma única vez, o sentido diluído da sua existência.

Vivemos no mundo acelerado de uma engrenagem desumanizadora. Uma engrenagem que deixou de ser o mecanismo de funcionamento de certas aspirações para ser a própria aspiração. Este mundo que em sua concepção materialista está assente sobre três pilares fundamentais: o trabalho, o consumo e a produtividade. E que apresenta consequências transbordantes que alagam, com toda sua implacável liquidez, nossa noção de sociabilidade e afetividade. Estamos condenados a nunca saber quem de fato somos porque não temos tempo de introspecção. Foi declarada guerra ao ócio criativo e é dele que mais necessitamos como antídoto do obscurantismo moderno. Quem nunca confortou um amigo confuso e perdido pedindo-lhe que não se preocupasse porque, afinal, estamos todos confusos e perdidos? Mas a questão é: temos mesmo de estar confusos e perdidos? Os jovens são induzidos a acreditar que o mundo é demasiado caótico e instável para merecer apreciações filosóficas, sendo amplamente preferível a objetividade robótica do funcionalismo na engrenagem. Mas devemos perguntar: por que o mundo tem de ser caótico e instável?

Nossas vidas são uma via expressa por onde passam vertiginosamente, sem ponderações de velocidade, todos os elementos básicos que a constituem. As proporções dramáticas dessa viagem, verdadeira lombra social, têm provocado distorções sobretudo nas relações de afeto através das quais expressamos nosso instinto sociável. As amizades se têm tornado cada vez mais frágeis e desenvolvidas segundo cálculos de conveniência que subvertem os princípios de decência. Os amores estão odiosos e amaldiçoados, configurando fórmulas latejantes de rancores e desavenças, para não dizer de ódio. Os sentimentos mais sublimes, como compaixão, solidariedade e tolerância apresentam-se descartáveis, meros adereços protocolares de ocasião. Nosso chão, no qual se fundamenta a percepção de equilíbrio e estabilidade, é diariamente abalado por tremores simultâneos de epicentros diversos. Tudo se desfaz em ápices, se escoa em córregos, se dilui em complexidades, se derrete em desconsiderações. Nossa humanidade escorre para o esgoto do embrutecimento e da insensibilidade para se perder nas profundezas da nossa essência reprimida pela dinâmica da engrenagem triturante, liquidificante.

A informação desinforma, a comunicação descomunica, a conexão desconecta e a virtualização desumaniza. Nunca estivemos tão aptos materialmente para estar juntos uns dos outros e no entanto estamos cada vez mais alienados, confinados em jaulas verticais de aglomerados urbanos desalmados, engavetados como formulários burocráticos em cubículos orwellianos. Decerto nem tudo é negativo no mundo líquido; a ruptura com modelos rígidos e pré-estabelecidos de construção da vida foi um enorme passo no sentido da emancipação humana e catapultou pautas libertadoras que ofereceram um rumo redentor a grupos sociais historicamente estigmatizados. A mordaça da autoridade se desvaneceu consideravelmente com o fim de concepções de mundo proto-mitológicas que beiravam o conformismo fatalista. Mas o rumo equivocado nos trouxe a esta amálgama de incertezas monstruosamente tirânicas. É contra suas consequências que devemos dar uma nova forma à matéria.

Naturalmente, da trindade física resta-nos o estado gasoso. Porém, enquanto os estados sólido e líquido representam comportamentos e uma dinâmica social, o estado gasoso seria um caminho filosófico percorrido por meio do ócio criativo. Do ponto de vista científico, o estado gasoso representa uma desagregação de moléculas ainda maior que a observada no estado líquido. Como não é isso que se pretende, a sua aplicação se limita à metaforização do exercício racional. Intuitivamente, associamos a filosofia a uma matéria flutuante, como se correspondesse ilustrativamente à magia de materializar a percepção da realidade a partir do espírito. Como bem destacou Carl Sagan, a palavra espírito significa respirar em sua origem latina, e como o que respiramos, o ar, é também matéria, por mais minúscula que seja, não se alude aqui a qualquer plano metafísico. Espiritualidade seria a introspecção filosófica, a consciência da própria essência. Dela, podemos impulsionar o motor do ócio criativo que percorrerá a agreste estrada da vida para revitalizá-la. Por fim, deseja-se que possamos reassumir a capacidade da variação de estado físico naturalmente, conforme nosso próprio ritmo biológico e nossas aspirações individuais. Precisamos resgatar a problemática da existência como uma afirmação da plenitude da vida.

A liquidez pode ser um estado versátil e de fácil adaptabilidade, mas percebemos que ele se arrasta pelos canteiros, pelas depressões, que é erosivo e agrava fissuras, além de ser fundamentalmente corrosivo e rasteiro. Sejamos, pois, matéria de espírito, condutores de virtude. Se na física o estado da matéria obedece à temperatura e à pressão, na sociedade as convenções sociais o enquadram e a engrenagem da desumanização baseada em valores corruptos o modela.

Não podemos subverter definitivamente as leis da física, mas devemos subverter a engrenagem social. Subverter pode ser pouco; sabotá-la e destruí-la antes que ela nos dizime talvez seja o mais sensato.

Imagine-se um físico, prestes a revolucionar o mundo.

Tenhamos a humildade que nos é oferecida pela consciência de que a nossa vida não dura mais do que os ridículos 0,16 segundos da escala cósmica de tempo - uma mosca vive, precisamente, 2.419.200 vezes mais na escala humana -, mas não deixemos de ambicionar a plenitude dessa fugaz dádiva que a mãe natureza nos ofereceu. Dignifiquemos a sua preciosidade. Não sejamos moribundos funcionários de funções funcionais. Não releguemos nossas vivências e nossos afetos ao capricho da vaidade. Não sucumbamos perante os vícios que a engrenagem reforça, como egoísmo, vaidade, falsidade, insensibilidade, indiferença e crueldade. Todos eles não passam de sinais de fraqueza. Façamos, sim, experimentos sociológicos, mas não usemos pessoas como cobaias das nossas conjurações. Revitalizemos o humanismo comprometido apenas com a virtude de senti-lo verdadeiramente.

Sejamos um pouco de Winston Smith e de gorila Ismael.

Sintamos definitivamente a juventude latejando dentro de nós e implorando para ser usada, por mais velhos que possamos ser.

Tenhamos suficiente profundidade mental para evitar que o imediatismo mágico destrua nossa humanidade.



Clique aqui para ler o Manifesto Sobre O Estado Físico Da Matéria II.

Tuesday, November 29, 2016

Por que "abandonei" o Facebook



Como todos devem saber, sempre tive forte presença no Facebook, dele usufruindo fartamente sem qualquer preocupação com noções de privacidade e sem preocupar-me com exageros de utilização, para os quais eu sempre encontrei uma justificativa plausível segundo meu próprio julgamento. Sou um animal comunicativo, necessitado de informação e, sobretudo, de um canal no qual eu possa expressar a profusão de pensamentos, ideias e opiniões que se me acometem impiedosamente. Durante os últimos seis anos, desde que preteri o finado Orkut - que tinha um alcance limitado ao Brasil - em favor do Facebook, a dinâmica da minha vida passou a depender fortemente dele. Graças à sua abrangência, fiz muitas amizades, diversos amores, alguns inimigos e alimentei debates infindáveis sobre os mais variados temas, uns descontraídos, outros tensos. Todos os meus dias começavam e acabavam com atualizações do seu feed de notícias. Pela timeline compartilhei minhas ideias políticas peculiares, meus pensamentos filosóficos, minhas amarguras, medos, vícios e paixões, difundi a minha arte fotográfica e a minha criação poética e todos os detalhes da minha vida, de viagens a sentimentos, de preferências musicais ao fascínio pelas ciências, sem nunca me preocupar com a exposição.


No entanto, o que mais compartilhei no Facebook foi, travestida de todas as coisas já referidas, a criação da minha imagem idealizada. Por mais que o processo tenha sido involuntário, a verdade é que eu tentava desesperadamente passar a imagem pela qual as pessoas me deveriam ver. Não é difícil saber que imagem é essa. Todos conhecem o Juliano como o artista intelectual de espírito boêmio e viageiro, o humanista radical amante das filosofias e dos prazeres mundanos, o entusiasta do ócio criativo e da sociabilidade inebriante. Não que eu não seja isso tudo: decerto tentava apenas reforçar com uma concepção imagética o pendor que me norteia por essência. Mas ninguém vê o Juliano problemático, ranzinza e introspectivo, depressivo e procrastinador, desanimado e rancoroso, trivial, imaturo e instável, decadente e solitário. O Facebook serviu-me de escamoteador, mas, acreditem: também sou tudo isso.


E você, que lê este texto, também. Você também tenta escamotear os seus defeitos e reforçar a noção que os outros têm das suas qualidades. Você também tenta omitir fraquezas, medos e o fato de não querer mais nada além de ter o ego acariciado, varrendo para um canto escuro da mente o latejante sentimento de mediocridade, por mais que se tente enganar pensando que não. A mim não engana e não me convenceria caso se justificasse com a mesma matriz argumentativa utilizada por mim para justificar o meu próprio comportamento. Conheço bem como funciona a negação, acredite. Eu assim agia sobretudo pela publicação de postagens escritas, porque simplesmente sou viciado em escrever e conjeturar ideias. A maior parte das pessoas o faz pela publicação de fotografias de momentos banais desinteressantes e desimportantes, para passar uma imagem em que querem acreditar que seja verdadeira por mais que não seja. Mas são as opiniões imediatistas da notícia relevante do momento que pautam por excelência toda a dinâmica facebookiana. Apesar da preferência à escrita, lembro-me de também publicar fotos de antigas aventuras satisfatórias em momentos de auto-estima diluída, por exemplo. Ou de fazer insinuações veladas sobre outrem por puro rancor ou até por inveja. Mas a evidência de um comportamento induzido na dinâmica facebookiana está muito mais na nossa postura de aceitação como engrenagem desse mecanismo do que em exemplos concretos.


Fui peça dessa engrenagem (e dela tirei muito proveito, nomeadamente para fins de experimentação sociológica e filosófica) até há umas poucas semanas, quando, por intermédio de motivações às quais a alusão é escusada, apercebi-me de quão patéticos somos todos nós que diariamente impingimos uns aos outros, de forma assediante, a nossa patológica necessidade de atenção e de auto-afirmação. Sempre tive certa noção de conteúdos fúteis, como auto-retratos em frente ao espelho, fotografias de comida, memes de auto-ajuda ou mensagens monossilábicas intimistas. Todavia, fui apresentado a um sentimento inédito; uma verdadeira revelação: o Facebook, ou melhor, a dinâmica facebookiana, nos está desumanizando, castrando a nossa essência e o nosso verdadeiro caráter. Estamos sendo sistematicamente padronizados, transformados em sujeitos rasos, cheios de manias narcisistas, arregimentados e programados para reagir a qualquer coisa no imediatismo mais indigesto e mais incapacitante da nossa própria racionalidade. Assim, passamos a saber de tudo para não sabermos de nada. Somos induzidos a sentir, num curto espaço de tempo - talvez até em simultâneo -, alegria, amargura, ódio, esperança, preocupação, alívio, desalento, simpatia, solidão, ojeriza, atração, revolta, compaixão, êxtase e o que mais conseguirmos extrair para estar espiritualmente adequados à ordem do dia. Ademais, essa dinâmica configura o que é provavelmente o maior e mais eficaz mecanismo difusor de mentiras e de induções ao erro e à distorção da história da comunicação humana.


Estamos sendo induzidos a preterir a nossa individualidade, o nosso ritmo biológico, os nossos interesses genuínos e a nossa cognição em nome da participação numa aldeia global cacofônica, arrogante, prepotente, chauvinista, egoísta e complexada. E insensível. Extremamente insensível. Especialmente quando nos deparamos com notícias de tragédias humanas. Nossos pesares e nossas duvidosas campanhas de solidariedade são tão efêmeros e supérfluos que não passam, efetivamente, de self-marketing. A dinâmica facebookiana é um cotidiano processo de alienação no qual somos mantidos entorpecidos pela velocidade supersônica de um mundo que se desinforma pela informação, se desconecta pela conexão, se descomunica pela comunicação e se desumaniza pela virtualização.


Isto não seria tão grave caso estivesse confinado ao mundo virtual da Internet, mas a dinâmica facebookiana tem ampla e manifesta propagação nas ruas, na vida real. Tem moldado comportamentos e condicionado noções de afeto. Tem criado pessoas que se relacionam com o mundo como se tudo se limitasse a abrir e fechar abas de portais ou de bate-papo. Tem concebido relações sociais cada vez mais frágeis, efêmeras e, sobretudo, baseadas em cálculos de conveniência. Zygmunt Bauman tem alertado exaustivamente para as armadilhas do Facebook e chamou modernidade líquida a esta concepção de mundo que se nos desaba (talvez se justifique recomendar aqui a leitura de alguns dos seus livros, como o 44 Cartas do Mundo Líquido Moderno). Eu a vejo como parte de um imediatismo mágico.


É possível que a maioria de vocês não se surpreenda minimamente com este texto por já ter uma noção daquilo que ele aborda. Eu não estou escrevendo nada de novo. Isto não é nenhuma nova conclusão avançada e visionária. Não é nenhuma perspicácia acurada e nenhum vislumbre de genialidade. Nada disso. Esta explanação é perfeitamente compreendida pelo que acredito ser até a maioria das pessoas. A diferença seja talvez o estado de consciência, porque assimilei de tal forma a compreensão dessa revelação que agora sinto sincera indisposição perante a simples ideia de atualizar o feed do Facebook. Há semanas que só leio as mensagens privadas que me enviam e absolutamente nada mais.


Sinto profundo desconforto perante posições unânimes ou comportamentos uniformizados que ofuscam qualquer contraditório (uma das consequências da dinâmica facebookiana), mesmo quando se trata de temas pacíficos ou causas sublimes e aparentemente inquestionáveis do ponto de vista moral. Fica-me sempre aquela sensação estranha no ar, aquela desconfiança. Porque, infelizmente, a bondade e a lucidez não são de forma alguma unanimidades sequer à escala da nossa vizinhança, que dirá de uma comunidade tão abrangente conectada num veículo online!


Excluirei o meu perfil? Não, não para já. Não vejo necessidade de uma atitude tão drástica. Tenho muitos amigos espalhados por países distantes que me são suficientemente importantes para que eu deseje manter a confortável sensação de tê-los ao meu alcance, facilmente comunicáveis, e ademais estabeleço uma clara distinção entre a plataforma comunicativa Facebook e a dinâmica facebookiana, que também pode ser dinâmica twitteriana ou youtubiana. Como veículo de comunicação e informação, o Facebook pode ser mantido positivamente mediante uma utilização saudável, construtiva e moderada. Como vício, como portal de egos e como navegação alienante de zombies à deriva de uma correnteza embrutecedora, certamente é desprezível e deve ser evitado. E é exatamente isso que venho informar através deste texto.


Eu sei que há pessoas que me acompanham pelo que escrevo. Sou-lhes grato. Mas sinto-me patético e saturado. Não tenho mais aspirações quanto às batalhas ideológicas e comportamentais na dinâmica facebookiana. Elas são estéreis, fazem-nos desperdiçar energias e até boas ideias. A partir de agora, a capacidade escrita e intelectual que adquiri ao longo dos anos - tenha ela a dimensão que tiver - será melhor canalizada nos meus blogues sob a orientação de projetos literários (que são, genuinamente, o que eu mais prezo nesta vida) obedientes somente à minha própria dinâmica. Eventualmente, deixarei links no Facebook (como o de acesso a este texto - cuja publicação tardou até que eu me tivesse assegurado de que estaria fora da dinâmica facebookiana), porque me importo com a difusão das ideias. Mas não pretendo voltar a entrar na sua dinâmica. Declaro-me voluntariamente exilado dessa aldeia virtual decadente e desumanizadora para encarar o deserto da invisibilidade pelas bordas de uma estrada filosófica rumando em busca da fonte de virtude, onde os laços humanos sejam verdadeiros e duradouros, as ideias redentoras e as capacidades individuais potencializadas.


Boa sorte aos que ficam. De tudo o que possuem que não seja ostentação superficial e egocêntrica, espero que tenham forças para não perder irreversivelmente a própria humanidade.




PS: é possível que este texto seja futuramente alterado ou reutilizado como esboço para um exercício mais amplo.