Tuesday, December 20, 2016

Neste Natal, esqueça-me


Entra ano, sai ano, e minha busca por algo que seja mais deprimente e patético que o Natal segue em vão. Não encontro nada. Não existe nada. O Natal é soberano no reino da mediocridade; é o grande pináculo de uma sociedade viciada em comportamentos perniciosos, escrava do consumismo e cada vez mais desprovida de valores afetivos.

Cada vez que um amigo me deseja o que podemos sintetizar num genérico Feliz Natal, que também poderia ser traduzido como nossa amizade é fútil e superficial, eu não tenho efetivamente nada para te dizer e para ser sincero não me importo minimamente contigo, mas remeto-te este voto que não passa de um clichê descarado porque é simplesmente o que todos fazem nesta altura do ano, embora ele não signifique absolutamente nada além de falsidade, eu fervo feito uma montanha piromaníaca assassina, como aquela que dizimou Pompeia. 

Insisto que não me incluam em círculos de dissimulação. Insisto que não me convidem para celebrações. Insisto que não me deem prendas porque não as retribuo. E as pessoas insistem em fazer tudo isso - ou quase tudo isso, porque as prendas, confesso, são escassas -, sempre cheias de uma simpatia imediata surgida aparentemente do nada. Entra ano, sai ano, e sou obrigado a retribuir sorrisos forçados e a implodir meus sinceros desejos de insultar a todos. Alguns pensam que a ojeriza que sinto do Natal é apenas um capricho, uma forma apelativa de ser do contra, como se o Natal fosse realmente tão encantador que não pudesse existir um real sentimento de repulsa contra ele. A alienação faz estragos maravilhosos nos que não querem ver as coisas como elas são; exime-os de inconveniências, como, por exemplo, a lucidez. Ou como a realidade, e por isso o Natal tem todo esse cenário mágico, onírico, onde todos fingem estar transformados no que há de melhor na espécie humana.

Mas a verdade verdadeira é que simplesmente odeio o Natal com toda a força que minhas entranhas odiosas conseguem odiar. A começar pelas luzes deprimentes que infelizmente fazem parte da tradição natalícia. Todas aquelas bolinhas coloridas extremamente idiotas e parolas, que transformam a cidade numa gigantesca máquina de hipnotização de hordas de zombies consumistas e famílias vulgares. Certamente essas luzes não provêm de fontes ecologicamente responsáveis e configuram um desperdício tolerável por causa da tradição. Luzes que brilham o brilho que nós não conseguimos reluzir em nossas vidas opacas de seres humanos desumanizados. Luzes que ofuscam todo o nosso egoísmo e toda a nossa maldade. Luzes que colorem vidas cinzentas e que nos tentam convencer de que apesar de todos os vícios nefastos com que atravessamos mais um ano absolutamente sem sentido em nossa existência enquanto funcionários funcionais e peças acéfalas de uma engrenagem trucidante, tudo será maravilhoso se nos deixarmos levar pela onda de falsidade e de hipocrisia, se gastarmos cada moeda de nosso ridículo soldo de peça acéfala em futilidades materiais que nos são impingidas por todos os lados, mescladas com ainda mais luzes e ainda mais mensagens fofinhas totalmente vazias, num vexatório festival de sincretismo religioso e materialismo totalitário, para com elas preenchermos as imensas e dolorosas lacunas de nossas vidas e para oferecermos, a quem julgamos merecer, como substituto de afetos que não conseguimos demonstrar ou por inexistência dos mesmos, ou por incompetência. Ou simplesmente por falta de tempo. 

E não me venham dizer que sou demasiado amargurado. Não é virtude fazer parte de uma festividade que forja (e tenta encenar) sentimentos sem no entanto os manifestar de fato e que está assente em enfermidades sociais.

Mas reconheço que o Natal tenha realmente sua função. Não, ela não é pregar amor, amizade, fraternidade e essas balelas. Ninguém está minimamente preocupado com isso - o Natal é, efetivamente, o ápice de todo o egoísmo que a sociedade desenvolve em cada um de nós. E também não é unir a família; a maior parte das pessoas que conheço é obrigada - por ela, por si mesma ou pelas convenções - a unir-se a banquetes familiares particularmente deprimentes e preferiria, sem sombra de dúvidas, aderir à orgia mais próxima, mesmo que fosse uma orgia de quiabos gosmentos. A grande função do Natal, que faz com que ele seja justificado até para mim, é evidenciar tudo o que temos de pior. É o grande palco de nossas vidas encenadas, onde vemos passar diante de nossos cínicos olhos, em meio às luzes deprimentes, toda a podridão que se espalha à nossa volta e da qual fazemos parte inequivocamente com assinalável contributo. Poucas pessoas a vêem, é verdade, afinal a grande maioria se deixa entorpecer pelas luzes, pelos sorrisos amarelos e pelas mensagens fofinhas e nauseantes de consumismo.

Sair à rua em Dezembro é algo que eu costumo evitar, mas nem sempre com sucesso. Na cidade do Porto o fenômeno da gentrificação e da transformação do espaço urbano central num parque de diversões hipster para turismo plastificado se incrementa consideravelmente com multidões de carcaças de capacidade racional condicionada e duvidosa deambulando para todos os lados com sacolas nas mãos, assediando montras, entupindo lojas, esmagando-se em vagões do metro como palitos de fósforos em suas caixas, poluindo a atmosfera com alegria alienante expressa em sorrisos mais falsos que o amor entre uma top model e um jogador de futebol. Famílias inteiras tentando fingir que se toleram e à procura de um sentido que não encontram no resto do ano. Procuram esse sentido em compras, em luzes idiotas e em tradições parolas. Entra ano, sai ano, sempre vazios e insatisfatórios, e todos renovam suas cargas de mediocridade, hipocrisia e falsidade em Dezembro. Em Janeiro - quando muito -, toda essa baboseira de espírito natalício já foi devidamente engavetada para o próximo Dezembro, embora ela nunca seja de fato utilizada em Dezembro algum. Pergunte a quem despreza o sem-abrigo com toda a frieza do inverno. Pergunte a quem buzina e insulta no trânsito, a quem não oferece assento ao velhinho ou a uma pessoa sobrecarregada no transporte público. Pergunte a quem acha que o nariz existe para ser empinado ou a quem se considera a última bolacha do pacote. A quem, de dentro de uma existência moribunda, só consegue reproduzir o que já existe à volta. 

Pergunte a quem durante todo o ano se limitou a ser apenas mais um. A quem se satisfez mergulhado na desvirtude, na inversão de valores afetivos. Pergunte a quem traiu o melhor amigo, a quem se ergueu pela mentira e se relacionou por conveniência. Pergunte a quem se utilizou de máscaras sociais para galgar na disputa pela aceitação. 

Pergunte a quem vai ao talho cheio de espírito natalício mais próximo comprar um pedaço ou o corpo inteiro de um animal que foi brutalmente torturado, morto e esquartejado num matadouro também cheio de espírito natalício para que, cheio de espírito natalício, o possa mastigar em sua ceia pacífica em meio a votos de compaixão. Ou a quem ao ler este parágrafo ache a crítica exagerada e radical, porque afinal não há nada de errado e repugnante em torturar, matar e esquartejar brutalmente para vender como comida suculenta qualquer animal que não seja de uma espécie à qual por convenção cultural decidimos que é errado e repugnante torturar, matar e esquartejar brutalmente para vender como comida suculenta.

Pergunte a quem não é capaz de mover uma única vírgula em favor de algo que não seja o próprio umbigo. Pergunte a quem terá o cinismo de enviar aquela mensagem simpática de fim de ano a alguém de quem não se lembra há meses ou mesmo anos. 

Pergunte a si mesmo.

Você que irá fatalmente remeter-me uma mensagem bonitinha e fofinha de Natal, achando que assim poderá respirar a frescura da sensação de ser um bom amigo, enquanto meu estômago dá voltas e eu controlo-me para não responder com um regurgito de ácidas palavras gongóricas.

E também pergunte por que motivo deveríamos celebrar esta tradição. Sobretudo, por que motivo somos merecedores dela enquanto espécie de purgatório invariavelmente redentor. Ilusões à parte, somos todos tristes figuras patéticas, parte de um mecanismo podre. E o Natal é apenas o ápice do processo de embrutecimento. Compreendo que a grande maioria das pessoas precise encenar. É um atalho para escapar à fustigante realidade. Particularmente, não caibo na encenação. Ela é cada vez mais sufocante e representa tudo o que mais desprezo.

Se você se considera meu amigo ou acha que por algum motivo mereço respeito, é sua obrigação esquecer-me neste Natal e em todos os outros.


1 comment:

  1. Amen. Subscrevo tudo, absolutamente tudo.
    (e nem imaginas o quanto me faz feliz estar num sitio em que nem dou por ele passar)

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