Tuesday, January 31, 2017

Sanguessugas


Hoje recebi um e-mail da autoproclamada maior editora literária de Portugal no qual a sua executiva me informava simpaticamente que a minha obra passara no teste de avaliação.

Seguiram-se as condições de publicação. Tudo parecia bem razoável, não fosse um singelo detalhe:

O autor compromete-se a adquirir 250 exemplares a 7,50€ cada.

Um total de quase 2.000€.

Não mesmo!

Ser escritor não significa ser otário, por mais que essas editoras vanity presses não pensem desta forma.

Ter de pagar pelo próprio livro é tatuar na testa um atestado de idiota.

Depois falei com um amigo que trabalha num grupo editorial que me disse o que eu já sabia: uma editora a sério paga aos autores para que sejam publicados e uma editora sanguessuga transforma o escritor em um mero cliente.

Não que as grandes editoras que pagam também não sejam sanguessugas, afinal o valor dos direitos autorais reservado ao escritor é irrisório e patético, mas é assim que tem funcionado o mercado editorial. Além disso, as editoras que pagam aos escritores são extremamente exigentes e é praticamente impossível ser publicado quem não tenha currículo, nome, fama e algumas cunhas, claro.

Cada vez mais a solução para quem não quer ser otário é tentar publicações por meio de financiamento coletivo ou até criar a sua própria editora.

O meio artístico é um dos mais fétidos, viciados e corruptos que há e o literário não foge à regra.

É por isso que eu não compro livros de grandes escritores. Faço download dos (poucos) que me interessam. Pirateio mesmo! A quantidade de livros na minha estante não chega aos cinquenta e a maioria são obras antigas adquiridas em segunda mão ou mesmo gratuitamente.

Só considero justo e digno comprar livros de autores menores, anônimos, rejeitados. Da mesma forma só compro discos de artistas de rua ou independentes.

Cabe a nós fazer desmoronar as fortalezas que aprisionam a divulgação artística, sujeitando-a a meras perspectivas de lucro. Não é errado que uma editora pretenda lucrar com a venda dos livros ou discos que edita, afinal ela tem seus muitos custos. O problema é o lucro ser o único crivo editorial.

Como escritor, quero e devo ser editado e publicado. Mas recuso-me a tratar a minha criação como mercadoria.

Ela é arte, não produto.


Monday, January 30, 2017

A pior das "pichações" é a publicidade



O lema Cidade Limpa do engomado João Dória é marketing de mau gosto e a sua perseguição - com todos os ares de acerto de contas - aos grafiteiros numa guerra que ele não pode ganhar é o capricho de um playboy que confunde a ocupação de um cargo público com autocracia. 

É um problema recorrente tanto desses playboys que se aventuram na política quanto dos políticos fisiológicos: não compreendem o que é um cargo representativo e julgam-se no direito de moldar a governança segundo seus caprichos tacanhos.

O trono do poder deve ser mesmo aliciante (como não recordar a denúncia certeira de Bakunin?). Quem nele senta deve sentir aquele entusiasmo incontrolável que faz parecer que tudo o que suas mãos tocarem explodirá, como sentiu o coitado do Arthur Dent ao descobrir que seu amor por Fenchurch era correspondido. 

Mas comparar o (ainda que fleumático) herói terráqueo desbravador involuntário do universo ao insosso João Dória é um desrespeito enorme a Douglas Adams, até porque Dória é um perfeito vogon. Ele não recita poesia regurgitante, mas seu ataque à arte dos grafiteiros já demonstra bem o que um sujeito elitista dotado de poder burocrático pode fazer a uma cidade real em que ele não vive. 

Mas voltando à breguice da Cidade Limpa - um termo que até tem grande coerência se for entendido como higienismo social -, é evidente que o recém-empossado prefeito paulistano não está minimamente interessado na harmonia visual da cidade que desgraçadamente o elegeu.

Ora, o sujeito é, ademais, publicitário. 

E daí? Bem, fez-me lembrar de um pequeno aspecto totalitário da paisagem das cidades: a publicidade desenfreada e parasitária que se espalha feito câncer por cada vez mais cantos conforme a criatividade dos gestores urbanos.


Haverá maior poluição visual de uma cidade que os painéis publicitários? No meio deles, grafites e meras pichações - que de certa forma são uma reivindicação provocativa do espaço público - são apenas detalhes de fundo. 

Parece-me elucidativo e sintomático que um publicitário empossado prefeito ataque tão agressivamente a arte urbana em favor das paredes cinzentas. Não me espantará minimamente se em breve essas paredes forem ocupadas com ainda mais painéis publicitários de quem pode pagar para poluir o espaço urbano.

Porque a questão se resume exatamente a isso: quem pode pagar para poluir visualmente a cidade o fará tranquilamente e com todo o apoio de munícipes. Quem não pode, será criminalizado. E ainda haverá aquela trupe de liberalóides maravilhados com tamanha sacada, porque a poluição visual regularizada enche os cofres públicos (aí o sujeito vai lá e gasta uma fortuna para apagar murais de grafite).

No totalitarismo econômico em que vivemos, é normal que a publicidade seja um nicho religiosamente protegido e visto como uma arte e uma genialidade. Na ficção de Douglas Adams, os publicitários estão fatalmente naquela nave com o terço inútil da população do planeta Golgafrincham que havia sido programada pelos Grandes Poetas do Círculo de Arium para colonizar outro planeta bem distante e insignificante (na verdade para espatifar-se contra ele e nunca mais de lá sair).

Falar em Cidade Limpa quando o apelo ao consumismo predatório e alienante polui cada metro quadrado possível só nos faz pensar que o termo é realmente uma referência ao higienismo elitista. 

As cidades são ambientes cada vez mais embrutecedores e alienantes. Têm sido selvas totalitárias onde o consumismo e o egoísmo imperam. Os corredores do poder fabricam gestores públicos bem enquadrados nessa lógica. Alguns são mais narcisistas, outros mais burocráticos. Quase nenhum sabe o que é a cidade real e quase todos têm uma perspectiva a partir das suas bolhas. No final, cumprem o papel de garantir o espaço urbano a quem pode pagar para utilizá-lo, por mais que seja uma utilização perniciosa ou que em nada o enriqueça culturalmente.

A lógica da cidade sequestrada pelos interesses das elites é bem clara:

Quer poluir a cidade? Pague para isso. Sua poluição será chamada de arte e você de empreendedor. Não tem dinheiro para pagar? Sua arte será chamada de poluição e você de criminoso. 

A arte popular é relegada à marginalidade. Mas assim ela também se desdomestica e se torna desafiante. E é assim mesmo que ela tem de ser: livre, rebelde e perigosa. Tem de questionar, atrapalhar e reivindicar. Tem de desafiar o poder e nunca se atrelar a ele.

Os prefeitos passam e seus caprichos também. A arte é atemporal. 

Um dia escrevi um poema a um músico de rua tcheco que apesar da avançada idade não se cansava de tocar seu saxofone e seu trombone na praça principal do centro histórico de Praga em meio a todo o ruído do turismo plastificado. Apesar de se tratar de uma manifestação artística distinta, dedico o poema aos grafiteiros, porque a luta é a mesma:

Passam transeuntes
E turistas varridos
Passa a brisa
E o olhar dos mendigos
Passam cavalos
E seu ar de martírio
E as gentes esnobes
Que desfilam delírio
As notas ecoam
E invadem ouvidos
Que se fazem ajustados
Os mais providos
Cada sopro é um esforço
Um grito de alívio
Que esbugalha os olhos
E faz tremer os cambitos
Passam os carros
Seus roncos poluídos
Que lhe ofuscam as notas
Mas não lhe tiram o brilho
Passam as modas
A chuva, a neve e o frio
Passa o verão
Esmorece-se o brio
E passam os anos
E renova-se a vista
Mas no coração da cidade
Nunca passa o artista.

Sunday, January 29, 2017

Um Mar De Revolta


Páginas: 228 (37.625 palavras)
Primeira edição: Janeiro de 2017
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Nos últimos anos, o Brasil tem sido o palco de uma intensa batalha política que transborda os corredores do poder e inunda as ruas refletindo um conflito de classes sistematicamente negado pelas forças da normalidade partidária e do mainstream informativo, mas cada vez mais evidente. Com a criação de um tímido Estado Social sobretudo nas gestões Lula, esse conflito que se desenvolvia mais sorrateiramente veio à tona e escancarou as profundas fissuras na sociedade brasileira. O advento de grandes eventos esportivos – especialmente a Copa do Mundo – e de uma grave crise econômica serviu para agravar as tensões e aumentar as suspeitas de esquemas de corrupção generalizada que se confirmaram com a Lava Jato. As grandes manifestações de 2013 iniciaram um período de agitação social talvez nunca antes vista e alavancou rivalismos esfriados mas nunca cessados. De repente, o cidadão comum tradicionalmente alheio à política passou a reivindicar espaço no debate e logo o país se polarizou em dois grandes grupos à flor da pele. Direita e Esquerda passaram a ser termos cada vez mais abrangentes e vazios, servindo apenas para categorizar o que de alguma forma fosse entendido como inimigo. No meio de um fogo cruzado antropofágico, tornou-se difícil empreender debates equilibrados e estruturados na racionalidade e na lúcida argumentação. O ódio espalhou-se e por alguns momentos pareceu respirar-se o ar de uma autêntica guerra civil. Esta obra registra a participação de um cidadão brasileiro residente na Europa que tentou contribuir honestamente para a compreensão de uma realidade cacofônica e explosiva. Sem nunca negar a sua posição e as suas preferências ideológicas, o autor tenta discernir acerca de uma realidade tão distante e ao mesmo tempo tão próxima, assumindo o seu desejo de estar nas frentes de batalha em defesa da justiça social e do amadurecimento humano.

Wednesday, January 25, 2017

Qualquer coisa é mais bela que uma parede cinza


Cidade que me pariu, mas que nunca me exauriu. A maior do hemisfério; seu tamanho é deletério. A cidade da garoa e do submundo. Centro da alta finança, calvário do sujismundo. Produto urbano do desenvolvimentismo. Antítese do humanismo. Engrenagem por excelência da santíssima trindade do delírio mercadológico: Trabalho, Consumo e Produtividade. A cidade que não pára e que não dorme. A cidade supersônica. A cidade que implode. De uma velha vanguarda tão tacanha e anacrônica. A cidade concreta: tão líquida. A cidade discreta que se auto-decreta. Urbe brutal que impiedosamente esmaga, hospedeira dos parasitas da alta nata.

Motor de um modelo falido, esconderijo de subversivos. Os negócios nefastos, a arte rebelde: capital da ação e da reação. Cidade de tantos mundos e de tantos muros: painéis de cimento subvertidos que reluzem vida em cores grafitadas. Murais desalmados por prefeitos engomados. A cidade do chauvinismo e da diversidade. A cidade de contrastes, a cidade da vaidade. A selva de concreto, do homem primata do capitalismo selvagem. A cidade dos guetos sociais, dos nichos culturais, das tribos urbanas, das mentes profanas. Do sonho mundano, de beltrano e cicrano. A cidade acinzentada pelo capricho de barões que não sentem sua vivência mas esbanjam seus brasões. O cinzento de muralhas tão elucidativo: o funcionalismo de uma urbe que é o seu paliativo. Funcionários funcionais: a caducidade da vida em rotinas tão banais que são zona de conforto desse vício tão mordaz de viver numa cidade que combate o que apraz. Santa produtividade que nunca é assaz na religião das catedrais, do mercado voraz. 

São Paulo, que é meu berço, também é minha maldição: imponente e venenosa, se ergue em contradição. É o antídoto do veneno do seu próprio ferrão. São Paulo que se rebela, mas que sempre passa a vez; gigante que é presa fácil quando reina a pequenez. Província megalópole; provincianos megalómanos. Estirpe urbana tacanha; tanta gíria e pouca manha.

Decerto que pariu filho que lhe preteriu: não sou herdeiro, não quero o seu trono. Vendida que está a infames patronos, da tua decadência não me desmorono.


Sunday, January 22, 2017

Quem elegeu Trump...


...foi a negação da política. 

Uma negação que torna o povo vulnerável a discursos demagogos e populistas.

Foi a superficialidade e a intolerância. 

Foi o orgulho da ignorância.

Foi o provincianismo.

Foi a arrogância de quem se nega a pensar e exige que lhe deem respostas imediatas e simplistas para problemas complexos.

O que elege Trump é a mesma mediocridade intelectual que elegeu Hitler.

A mesma que pretende eleger Bolsonaro no Brasil, que vibra com chacina de bem, diz que bandido bom é bandido morto e acha que o machismo é divertido.

A que fez o Brexit vingar.

Ou a que transformou a Polônia numa semi-ditadura nacional-cristã e que mantém a sombra de Le Pen à espreita na França.

Quem elegeu Trump, portanto, foram os discursos de ódio, o conservadorismo, o nacionalismo. Foi o medo da mudança - só um analfabeto político pode achar que o discurso de Trump representa algum tipo de alternativa.

Negar o mainstream político, as figuras fisiológicas, não significa negar a política em favor de supostos novos heróis, de personificações. Negar o mainstream político é negar toda uma engrenagem social, política e econômica que só se reforça com Trumps e Bolsonaros.

Quem elegeu Trump foi uma direita que sempre se esforçou para ridicularizar o ativismo político alternativo e sempre difamou os movimentos sociais.

Foram os papagaios das redes sociais que criam o seu pensamento por meio de memes

Foi um sistema eleitoral viciado totalmente favorável à plutocracia, ao qual chamam cinicamente de democrático.

Quando as pessoas se negam a pensar e a dinamizar a concertação política para preguiçosamente se deixarem levar por individualidades demagogas fabricadas justamente para ecoar discursos rasteiros que caem muito bem a quem se satisfaz com a mediocridade da normalidade e do lugar-comum, surgem os Trumps.

No Brasil não surgiu apenas Bolsonaro. Surgiu o MBL, os Revoltados Online. Surgiu toda uma safra plantada pela negação da política.

 O primeiro passo para combater essa negação é a autocrítica, mas vivemos num período de polarização em que reconhecer erros é visto como sinal de fraqueza.

O segundo passo é a honestidade. No entanto, vivemos num momento de velocidade supersônica da (des)informação em que tudo vale para derrotar o inimigo.

O terceiro passo é a perseverança numa época em que todos parecem satisfeitos com clichês e discursos empacotados e qualquer coisa mais complexa que manchetes e rodapés é demasiado dispendioso para merecer atenção.

Por sua vez, a negação da política é o primeiro passo para o fascismo.


Thursday, January 19, 2017

Em defesa da música brasileira


Vou ser bem direto neste texto.

Revolta-me ver lixo sonoro enlatado proliferar-se na Europa (especialmente em Portugal) sob a designação música brasileira

Como brasileiro fascinado pelas genuínas manifestações musicais tupiniquins, sinto-me ofendido a cada vez que alguém utiliza o termo para aludir à poluição sonora das modas estupidificantes que a indústria fonográfica inventa para se encher de dinheiro.

Sim, porque há gente se entupindo de grana com a ditadura da mediocridade que toma conta do mundo do entretenimento. 

O Brasil é um cenário propício para esse tipo de música que não passa de um produto com valor meramente comercial: é para ser vendido durante um período de tempo até que seja substituído por outro produto igualmente sofrível do ponto de vista artístico e cair no esquecimento.

Culpados? Há muitos.

A começar pela indústria que em nome dos seus ganhos rebaixa o cenário musical brasileiro à podridão, ao analfaburrismo. Ela despreza a verdadeira expressão artística do país para transformar vedetas retardadas em ícones fugazes do show de horrores da cultura dominante plastificada. 

Noutro dia abri um video no Youtube de um desses novos hits do que lamentavelmente convencionou-se chamar funk. Tinha mais de cem milhões de visualizações. Cem milhões! A batida exaustiva e igual a todas as outras do gênero servia para ritmar uma voz totalmente artificializada cheia daqueles efeitos que tentam esconder a falta de talento. A letra tinha um qualquer trocadilho pornográfico do qual felizmente não me recordo.

Quando a experiência já passava os limites do insuportável e chegava ao intolerável lançando lufadas de ódio no meu estômago, concentrei-me nos videos relacionados. Abri quatro ou cinco até me dar por satisfeito. Todos tinham dezenas de milhões de visualizações.

Alguns daqueles sons aos quais eu me nego a chamar música não eram de todo desconhecidos, afinal eles costumam ser tocados nos estabelecimentos noturnos da cidade e eu, além de às vezes trabalhar como fotógrafo de balada, tenho atração pelo fel da noite.

É claro que fujo dos locais que poluem a atmosfera e tratam os ouvidos alheios como sanitários. Mas nem sempre dá para escapar. A noite é o cenário das interações sociais e das relações dos indivíduos com as ofertas culturais. 

É aqui que aumenta a minha revolta.

Promotores culturais têm sido COVARDES ao privilegiar essas bizarrices em detrimento da verdadeira música brasileira que é muitíssimo bem representada por diversos músicos talentosos residentes no Porto. É um desserviço à cultura e à arte que indivíduos autodenominados DJs (e que se limitam a pressionar dois ou três botões para ecoar o mais fétido lixo sonoro das modas comerciais embrutecedoras) ocupem o espaço que deveria ser dos verdadeiros músicos que se esforçam para apresentar com qualidade repertórios genuinamente representativos da música brasileira.

É por darem total espaço a essas baixarias que o português e o europeu comum acham que música brasileira é exatamente o lixo que lhes é impingido por quem importa essas contrafações sonoras. Se eu disser a alguém que gosto de música brasileira sem ter a devida preocupação em explicar o que ela de fato é, serei totalmente mal entendido, porque o que está automaticamente ligado ao termo são as porcarias comerciais descartáveis que infestam TVs, rádios e estabelecimentos noturnos.

Houve uma indevida apropriação e os brasileiros residentes no exterior deveriam ser os primeiros a denunciar a transformação de arte em lixo enlatado. Mas não o fazem porque já estão todos muito bem arregimentados pela cultura dominante.

Ademais, é de se lamentar que um público composto por estudantes universitários de classe média, com todos os acessos à cultura facilitados, se limitem a consumir e a difundir essas enganações como se fossem de fato música brasileira. O pretexto é sempre o mesmo: "é dançante". Como se não houvesse música dançante de qualidade. Como se só fosse possível dançar ao som de batidas mecânicas de autênticas máquinas de produção de hits plastificados e de letras fúteis e manjadas, que não oferecem nenhum desafio mental e sequer são engraçadas. São a expressão da mais pura negação à cultura. São o triunfo da tacanhice e da mediocridade sobre a arte e a virtude.

É lamentável que esse público tenha efetiva preferência por lixo sonoro GRAVADO e reproduzido por pseudo-DJs, desprezando noite após noite as verdadeiras manifestações ao vivo de música brasileira.

O apelo à ignorância e ao entretenimento vazio é poderosíssimo. Os ambientes noturnos se formam sob essa nebulosidade. O que se quer é um ruído ensurdecedor e gente rebolando com aquele sorriso patético no rosto. O pior é que esse lixo é reutilizável: há toda uma série de remix do remix do remix por meio dos quais vão sendo reaproveitados pedaços da podridão ano após ano, numa mixórdia grotesca do mais fétido mau gosto.

Ah, mas gosto é como cu: cada um tem o seu.

Balela! Essa é mais uma daquelas frases batidas que cai muito bem para quem tem preguiça de pensar. Equivale a algumas outras igualmente perniciosas, como política e religião não se discutem.

Ora, é perfeitamente possível fazer uma análise técnica da música. Há gêneros que se preocupam mais com letras e outros com melodias. Há expressões meramente instrumentais e há as que têm na mensagem a sua grande espinha dorsal. E depois há as modas apelativas que não possuem qualquer rigor artístico e só existem de fato para dar dinheiro a uns espertalhões que se aproveitam da miséria da cultura dominante.

Esses funks, sertanejos universitários; os ai se eu te pego da vida; os pagodes e axés dos anos 1990. Tudo isso obedece a uma lógica de mercado e não a uma dinâmica cultural. Vão desaparecer com a mesma velocidade com que surgiram, porque ao que tudo indica a capacidade humana em produzir lixo é infinita.

É mais do que uma questão de gosto, aliás. Esses produtos são parte da estratégia de alienação do povo, uma estratégia que o afasta, por exemplo, da filosofia. Manifestações supostamente artísticas totalmente estéreis que não fazem ninguém pensar são um método de controle social.

E antes que alguém pense em me acusar de elitismo, fica a dica: meus gêneros brasileiros de predileção nasceram e se desenvolveram, todos eles, na periferia e em ambientes populares. A começar pelo inevitável samba, que é uma das grandes maravilhas da cultura brasileira. O Hip Hop também está muito bem representado na periferia, com a contundência que o gênero talvez não encontre em mais nenhum lugar do globo.

Noutro dia ouvi não sei quem dizer que não devemos julgar o funk ostentação e pornográfico porque ele tem origem na favela. Eu lamento profundamente que o povo mais carenciado, que tem o acesso à cultura e a arte sabotado, tenha de ser utilizado como escudo de defesa do indefensável. Esse funk (coitado do funk original) não tem virtudes - além de ser descaradamente machista. É espelho das carências intelectuais de um povo relegado à ignorância por elites políticas que não se preocupam em desenvolver verdadeiramente uma educação artística nas escolas e por uma mídia traiçoeira e oportunista que mercantiliza as expressões populares enlatando-as para que sejam vendidas como produtos de entretenimento com forte poder de distração e alienação e nenhum poder pedagógico.

Portanto, não há elitismo na minha crítica. Os lixos sonoros são subprodutos de uma realidade decadente. Como a própria criminalidade. Não pretendo que a favela ecoe em seus bailes a poesia de Chico Buarque, a filosofia de Belchior ou o drama da música clássica. Elas podem desenvolver as suas próprias expressões como tantas vezes já o fizeram sem precisar recorrer à alta cultura. A cultura popular pode ser extremamente rica e perspicaz do ponto de vista técnico caso não se desenvolva mediante os anseios de promotores do mainstream que são autênticos sanguessugas e só querem faturar com a decadência cultural.

Já os estudantes, os jovens de classe média que têm total acesso a tudo o que quiserem ter em termos culturais, deveriam repensar a sua postura. Eles não têm desculpas. São apenas desleixados, preguiçosos e ignorantes. Deveriam perceber que deles depende a difusão cultural. Se consumirem lixo, estarão colaborando para a intensiva produção de esterco vendido como arte. Se souberem ser seletivos, poderão favorecer quem deve ser favorecido, ou seja, os verdadeiros artistas que se sacrificam para carregar o bom nome da música. 

Ou então inventem nomes para esses sons insalubres que ouvem, porque música brasileira não é. Nunca será. A música brasileira é atemporal; não morre e não é enlatada. 

Respeitem a música brasileira e apoiem os seus artistas como apoiam as vedetas descartáveis. 



Tuesday, January 17, 2017

Atualizações literárias


Acabei 2016 decidido a tornar 2017 um ano literário. Desde Julho tenho estado concentrado na concepção de um punhado de obras que devem ser publicadas durante este ano se tudo correr como planeado. 

Escrever, escrever e escrever. Eis o grande prazer da minha vida trintona. Nada me satisfaz mais do que ver nascer do meu esforço textos linha após linha. E ter esses livros materializados é absolutamente pacificador com a sensação de se ter realizado algo verdadeiramente valioso e construtivo.

Pois então Janeiro chega apenas ao meio e duas obras minhas já foram finalizadas e publicadas. Desta vez, optei por testar os mecanismos online da Amazon. Pode ser que ainda procure editoras para fazer relançamentos, mas para já vou deixá-los disponíveis na Internet. 

O primeiro livro publicado foi a compilação Significância Em Escala Poética, que é uma atualização da minha primeira obra de poesia, Travessa das Almas, com novos poemas e textos introdutórios, reconfigurando toda a sua conceptualização. O segundo se chama Criminalidade no Brasil: Um Desafio Humanista e tenta ser um contributo ao debate polido e racional sobre um dos maiores problemas do país. Abaixo deixo uma descrição de ambos.


Significância Em Escala Poética

Páginas: 120 (10.442 palavras)
Primeira Edição: Janeiro de 2017
Disponível AQUI.

 Significância Em Escala Poética é uma compilação de poemas escritos ao longo dos últimos três anos sob a diversificada ambiência das quimeras noturnas e vivências multiculturais. Seu autor, um imigrante brasileiro na Europa, expõe suas experiências catárticas, libertinas e etílicas, bem como seus devaneios filosóficos, suas ideias políticas e seus sentimentos afetivos. A obra nos leva a uma viagem pelo submundo da boemia europeia, das confrarias estudantis, da promiscuidade, da decadência urbana, das amizades inspiradoras - ainda que fugazes -, dos amores, recantos, encontros e desencontros. Mostra-nos uma vida diluída e espalhada numa amálgama de percepções, desejos e acontecimentos pitorescos, e refletem, indubitavelmente, os anseios de uma geração perdida em suas próprias complicações, atordoada pelos seus vícios e complexidades. Quase chega a ser um manifesto político revolucionário em função do sufoco espiritual provocado pela inércia de um país em crise cujos jovens permanecem distraídos pelos produtos de entretenimento alienantes. Todavia, este livro é sobretudo um desabafo substancialmente intimista de um indivíduo solitário no meio de tantas pessoas e experiências, clamando por um sentido numa vida que parece rumar vertiginosamente à loucura enquanto os anos passam em altas translações. Ao lê-lo, o leitor terá uma noção do submundo de algumas localidades europeias e receberá relatos em primeira pessoas de uma realidade que talvez pouca gente conheça e que emana toda a convulsão de uma atualidade a que o sociólogo polonês Zygmunt Bauman chamou modernidade líquida e a que o autor chama imediatismo mágico.


Criminalidade no Brasil: Um Desafio Humanista

Páginas: 70 (9.205 palavras)
Primeira Edição: Janeiro de 2017
Disponível para compra em breve.
Download gratuito em PDF.
O problema da criminalidade é um dos grandes desafios da sociedade brasileira e os tremendos fracassos sucessivos apontam para a necessidade de um novo paradigma que reoriente as políticas de segurança pública, os métodos punitivos e invariavelmente as questões de distribuição de renda. Perante um flagelo crônico arraigado à complexidade da realidade brasileira, é urgente que haja um amplo entendimento sobre as origens da criminalidade e sobre as formas de a combater dentro do Estado de Direito, preservando conquistas fundamentais estruturadas ao longo de décadas de desenvolvimento ético e moral. O desafio mostra-se ainda maior em função da existência de um ambiente tenso em que figuras com influência política conseguem incutir na mente dos cidadãos ideais demagogos que se difundem com o apelo à barbárie do justiceirismo popular violento. A cultura de vingança difundida com mensagens de ódio tem intoxicado o debate e impedido uma participação popular equilibrada e empenhada na mitigação de um problema que faz sangrar um país politicamente rachado. No meio de tanta cacofonia inconsequente e tanta confusão de interesses políticos e ideológicos, é necessário fazerem-se ouvir as vozes que propõem ideias alternativas à barbárie e que tentem encontrar um caminho para a resolução de uma situação que assume todos os contornos de crise humanitária. Esta obra tenta contribuir como um ponto de partida para a abordagem racional do problema, reforçando a necessidade de assegurar os direitos humanos.



Pretendo anunciar novas publicações durante os próximos meses. Mais dois títulos aguardam detalhes finais para que sejam publicados. São eles a Antologia Maldita do Jingoísmo Ludopédico, que é uma compilação de ensaios críticos sobre a indústria do futebol moderno, e Um Mar De Revolta: O Terremoto Político Brasileiro Sentido Do Outro Lado Do Atlântico, sobre os últimos três anos de discrepância política e ideológica no Brasil.



Sunday, January 15, 2017

Associação Internacional dos Comentadores de Internet


A AICI (Associação Internacional dos Comentadores de Internet) informa orgulhosamente que vários níveis de imbecilidade humana têm sido superados amplamente nos últimos anos e reconhece sobretudo o esforço da sua afiliada no Brasil, a ABCI (Associação Brasileira dos Comentadores de Internet), em desenvolver intoxicação a partir da destilação de ódio.

Monday, January 9, 2017

Hoje o mundo ficou mais líquido



Zygmunt Bauman morreu hoje.

Justamente quando acabo de publicar um livro de poesia inspirado no seu conceito de modernidade líquida. Há cerca de um ano eu iniciava este blog com o intuito de desenvolver um estudo baseado no seu pensamento. Peguei-lhe emprestado o conceito para utilizá-lo como ponto de partida de tudo o que é aqui publicado. Tenho mais dois livros fortemente inspirados na temática liquidez e tenciono publicá-los ainda durante este semestre. Meu objetivo é contribuir para uma compreensão do fenômeno sociológico da atualidade, apontando os seus sintomas e consequências.

Seu profundo estudo sobre a modernidade líquida é absolutamente imprescindível para a compreensão da atualidade. Não posso deixar de recomendar especialmente as seguintes obras:

Vida Em Fragmentos (1995)
Modernidade Líquida (2000)
A Sociedade Individualizada (2001)
Amor Líquido (2003)
Vida Líquida (2005)
Medo Líquido (2006)
Vida Para Consumo (2010)
Aprendendo A Pensar Com A Sociologia (2010)
Capitalismo Parasitário (2010)
44 Cartas Do Mundo Líquido Moderno (2011)
Cegueira Moral (2014)

Quase todos os títulos estão disponíveis para download aqui.



RIP Zygmunt Bauman.

E obrigado!


Sunday, January 1, 2017

Jardim das Flores Mortas


Um hábito comum que as pessoas têm a cada fim de ano é fazer retrospectivas, ponderações, balanços e planos. O calendário transmite a ideia de que uma etapa da vida se acaba e outra começa, embora não passe de ilusão em grande parte para padronizar comportamentos e manter a todos eternamente esperançosos em melhorias dentro de um estilo de vida que foi perpetrado para os sacrificar. 

Ademais, é impossível, na modernidade líquida, que um ano seja realmente uma unidade tão rígida, uma única etapa. 365 dias passam cada vez mais rápido mas também são cada vez mais complexos. No segundo mês de 2015, por exemplo, eu já implorava desesperadamente para que ele acabasse. No entanto, e em função de uma série de eventos que se foram desencadeando, ele acabou sendo um ano satisfatório, até positivo, cheio de superações e rumos improváveis. Foi um ano experimental (fiz oito tatuagens, um piercing na sobrancelha e outro no pescoço sob a nuca - sim, no pescoço! -, tive vários empregos malucos, etc...), em que a liquidez se fez implacável mas de alguma forma eu parecia conseguir certa estabilidade em meio a todo o caos.

Tudo se diluiria novamente nos últimos dois meses. Posso dizer que 2016 começou, para mim, em Novembro de 2015. Decisões mal tomadas, rumos mal planeados e especialmente prioridades equivocadas...

Já 2016 foi um ano de revelações. Revelações duras como aquele velho pão petrificado que quase nos parte os dentes. E de ainda mais duras aprendizagens. Os dias satisfatórios corresponderam exatamente à duração do festival Andanças nas inóspitas terras alentejanas: sete dias. Todos os outros 358 dias só não foram um total desperdício de tempo e energia porque nos últimos seis meses empreendi projetos literários com a seriedade que nunca antes lhes reservara. Entro em 2017 com dois livros praticamente finalizados e mais dois já bem avançados, além de pretender reeditar pelo menos um dos meus dois livros de poesia.

O legado de 2016, as revelações e aprendizagens, estão ligadas às relações que nós, flores urbanas, estabelecemos neste jardim de concreto cuja impermeabilidade impede que a sua própria podridão seja escoada. Se eu pudesse resumir esse legado em fragrâncias, elas seriam mais a inhaca de traição, egoísmo, falsidade e ingratidão. Conheci o amargo néctar de cada uma delas durante todo o ano e sobretudo (definitivamente) a partir do verão. Fui traído pela pessoa de quem eu era o melhor amigo. A pessoa por quem exclusivamente me comprometera com ideais assentes na noção de empatia durante dois anos. Se nesta vida eu já me sacrifiquei por alguém ao extremo e de forma totalmente desinteressada, foi por ela.

E a retribuição que tive não foi nada além daquelas quatro palavras. Nas coisas simples e insignificantes eu podia ver com clareza toda a perpetuação da injustiça: eu, vegano, cheguei a preparar-lhe alegremente omeletes de ovos e queijo, traindo meus próprios princípios e lutando contra a repulsa que aquilo me causava. Ela, por sua vez, foi a única pessoa de todas as minhas amizades mais próximas que nunca me enviou um cartão postal, apesar de saber da minha coleção e de eu pedir-lhe vezes sem conta. Sou um grande observador das pequenas coisas e acredito que nelas estão as revelações do sentido da vida, além de serem deveras elucidativas dos comportamentos à escala humana.

Não que a gratidão devesse ser uma obrigação. É exatamente o contrário: em relações saudáveis e equitativas ela se manifesta como essência das mesmas. E o mínimo que devemos esperar de pessoas com quem estabelecemos forte ligação afetiva é uma influência não destrutiva em nossas vidas. Pessoas que se apoiam tanto em nós deveriam ao menos estar propensas ao apoio mútuo e à reciprocidade.

Desde que rompi com ela como derradeira tentativa de fazê-la abrir os olhos e repensar a sua postura - o que não aconteceu -, o que havíamos construído se desmoronou e eu cheguei à inequívoca conclusão de que a nossa relação foi um desperdício de tudo o que ela implicava, incluindo inspiração poética. Como se tratava da pessoa mais íntima com quem eu me relacionava, a mais próxima e aparentemente mais cúmplice, toda a percepção das relações sociais foram sacudidas e ainda pairam nas alturas da minha mente, baralhadas e sem sinais de que regressarão aos seus lugares. Descobri definitivamente que aquela intimidade, proximidade e cumplicidade não eram nada mais do que falsidade e dissimulação. Eu era como uma loja de conveniência non stop aberta exclusivamente a um cliente que a ela recorria apenas caso não houvesse outra opção ou caso sentisse que tiraria algum benefício pessoal imediato.

O termo imediatismo mágico, utilizado por mim como complemento ao modernidade líquida, provém exatamente do egoísmo de quem se aproveita maquiavelicamente de pessoas para satisfazer os seus caprichos. Seu comportamento intransigente provocado pela vontade imediata é um dos efeitos mais nefastos do nosso mundo atual, ele próprio em vertiginosa transformação e nela espelhado tão fidedignamente.

Nos últimos meses de 2016 algo mudou dentro de mim. Minha esperança nas pessoas e nas amizades se desintegrou. Andará agora espalhada em pequenos fragmentos flutuantes consoante a direção dos ventos invernais que se fazem soprar. Afastei-me de todas as pessoas, mantendo apenas algumas relações mais esporádicas, porque neste momento não confio sequer na minha própria sombra. Tenho consciência da existência de flores confiáveis, flores genuinamente bem cheirosas. Mas exatamente para não ser-lhes injusto é que tenho procurado afastamento e isolamento neste jardim soturno. Nos últimos meses flagrei-me sendo um elemento negativo na vida de algumas flores justamente devido ao desnorteio causado pelo descomunal desgaste daquela quimera verdadeiramente distópica com uma flor espinhosa a quem eu gostaria de nunca ter conhecido e muito menos deixado estabelecer-se em meu canteiro. Não consigo imaginar neste momento um arrependimento maior do que este.

Até que eu reagrupe a esperança e reassente as percepções poderá levar muito tempo. Talvez 2017 não seja suficiente, embora esta seja a única coisa que dele espero se me puser a fazer desejos como fazem os outros. Mas não sou de superstições. Eu cometi o grave erro de deixar entrar na minha vida qualquer pessoa que se apresentasse com um sorriso simpático. Hoje sei que não posso deixar entrar quem quer que bata à porta, porque vivemos num mundo cujas relações estão submetidas a interesses egoístas, a cálculos de conveniência. Sobretudo, aprendi que comportamentos infantilóides e irresponsáveis são traiçoeiros e devem ser evitados por mais atraentes que possam parecer.

Aprendi também que a minha dignidade e o meu bem estar não podem estar sujeitos aos caprichos interesseiros e calculistas e absolutamente abestalhados de pessoas que não sabem medir a sua pegada social e o impacto das suas atitudes nas vidas que com elas se relacionam. Que maldade e crueldade nem sempre se apresentam como monstros e que podem estar bem disfarçadas com belas máscaras e ter um carisma sedutor enquanto escondem bestialidade e embrutecimento.

Percebi que há flores aparentemente cheias de vida que estão, se não mortas, espiritualmente envenenadas.

Que a ilusão de podermos redimir e transformar pessoas perdidas em vícios perniciosos não passa exatamente disso. São ilusões perigosas e intoxicantes. E que essas ilusões nos podem custar, além da saúde mental e física, a própria relação com pessoas que valem a pena.

2016 mostrou-me que a injustiça é brutal e que a impotência perante ela é corrosiva. Exibiu-se-me a face mais cruel do egoísmo humano. Uma face que desfere sua maldade com indiferença e é capaz de seguir a vida sem sentir quaisquer remorsos.

A introspecção em que agora me encontro responde a duas necessidades: reorganizar-me e finalizar o meu exercício literário sobre o imediatismo mágico, o qual já havia iniciado antes do desfecho dessa história de terror exatamente por eu estar preocupado com o rumo que as relações humanas estavam tomando à minha volta. Tenho desenvolvido o Manifesto sobre o estado físico da matéria (que já tem as partes I e II publicadas neste blogue) como apresentação desse estudo sociológico que tem como objetivo contribuir para o combate à desumanização, no qual se por um lado não nutro ilusões de vitória, por outro garanto leveza na consciência. A forma como estamos numa relação, seja ela qual for, mostra muito daquilo que somos.

Já este texto não é um mero desabafo contra uma situação particular. Ele é parte do estudo, embora uma parte delicada por corroer-me as entranhas. Sua leitura até poderá levar em conta o caso específico, mas sua abordagem encontra grande abrangência na atualidade e certamente poderá ter aplicabilidade em outros casos semelhantes que pautam o nosso mundo. Por conseguinte, desenvolver uma consciência equilibrada sobre o fenômeno social bem identificado é o que pretendo como ponto de partida para o combate à artificialização das interações humanas.

A metáfora das flores não surgiu por acaso. Um dia, há mais de dois anos, fui agraciado com uma flor literalmente morta pela pessoa que fez de 2016 um ano revelador para mim. Como consequência disso, escrevi-lhe um poema intitulado Flor Morta, no qual, apesar do nome, a homenageio. Depois escrevi um livro de poesia chamado Jardim das Virtudes, fazendo alusão a um local da cidade do Porto que nos marcara. Ela é a única pessoa que possui um exemplar físico dele. Nem eu o tenho, porque aos poucos me fui apercebendo de que havia algo substancialmente errado nele. Hoje, desintoxicado da toxidade traiçoeira daquela flor de espírito envenenado, consigo perceber o que havia de errado. Sua reedição tratará de corrigi-lo e seu novo nome será o título que encabeça este texto.

Ele será uma homenagem a todas as flores vivas que exalam benevolência e atuam solidariamente pela harmonia de todo o jardim.