Saturday, May 7, 2016

O treinamento da inutilidade

O Brasil é o país número 1 no mundo em cirurgias plásticas e está no top 5 dos que mais consomem suplementos energéticos.

Nos últimos dez anos, a prática de futebol no país caiu quase 30% e a musculação aumentou quase 20% - talvez isso explique os 7 x 1 da Alemanha...

Estão trocando o elemento lúdico pelo sacrifício.

Treinar, dizem.

Treinar para nada.

Para exibir músculos e definir o corpo segundo os violentos padrões estéticos que vigoram.

A febre da academia (ou ginásio) agora também vai se espalhando por Portugal, muito provavelmente devido à influência brasileira.

Uma parte significativa dos portugueses que conheço passou a ter a musculação como hábito.

Quase todos os meus amigos de infância do Brasil tornaram-se corpulentos e musculosos. Eu não teria qualquer chance num confronto com eles.

E adoram exibir seus físicos que contrastam com o pequeno volume das suas cabeças, desproporcionais às magnitudes corporais alcançadas. 

É uma postura sobretudo masculina, talvez incrementada no apelo das recentes modas desportivas violentas (MMA, UFC e até Futebol Americano), embora não seja exclusividade dos homens, claro.

Nunca entrei numa academia de musculação.

Não pretendo um dia entrar.

Não celebro o meu sedentarismo, mas atividades físicas saudáveis são bem diferentes da busca pelo corpo socialmente padronizado.

Não tenho o mínimo interesse em músculos e não tenho vergonha nenhuma de exibir meu corpinho franzino com aquela barriga de cerveja saliente. 

Foda-se!

De todas as inutilidades inventadas para desperdiçar o tempo das pessoas, a musculação luta para ser a mais grotesca.

É evidente que as pessoas que se sujeitam a ela querem ter desesperadamente o corpo que a indústria do consumo lhes impinge, embora jurem cinicamente - enganando a si próprias - que o intuito seja apenas praticar atividades físicas.

Balela!

Se realmente quisessem praticar atividades, escolheriam modalidades desportivas divertidas que unissem o esforço físico ao elemento lúdico.

Pegar peso num estabelecimento fechado cheio de máquinas não apenas soa a martírio, mas se configura como tal.

É absolutamente enfadonho.

Quem quer exercitar-se fisicamente tem todo um leque de opções coletivas ou individuais.

Há uma lista infindável, inclusive com modalidades de contato direto com a natureza.

Mas quem quer apenas criar músculos e exibir a aparência, enclausura-se em estabelecimentos de musculação. 

Para...treinar.

Subverteram o significado do verbo.

Agora ele não significa preparação para algo.

Quando jogava futebol, eu treinava para uma partida, mesmo que fosse apenas contra outro time do bairro. O elemento competitivo aliava-se ao puro prazer.

Agora "treinar" significa o ato em si e não indica nenhum objetivo técnico.

Treina-se em nome de uma aparência.

De um padrão estético.

Treina-se para absolutamente nada!

"Ah, mas eu me sinto bem assim".

Não duvido!

A maioria das pessoas sente-se bem seguindo modas e costumes massificados.

Por isso mesmo é que são massificados.

E são inúteis em todos os sentidos, inclusive desportivamente.

O único sentido é mesmo conseguir alcançar e manter uma aparência estabelecida socialmente.

É a personificação da futilidade.

Quantas dessas pessoas seguiriam "treinando" caso não houvesse nenhum resultado físico visível?

É a pergunta incontornável que lanço.

Imaginem não terem "substância" para as selfies no Facebook.

Em vez do treinamento do corpo para eventos relevantes, ou da mente para o seu desenvolvimento intelectual pleno, perdem tempo com algo que não servirá para absolutamente nada quando os anos se mostrarem cada vez mais implacáveis.

E o fazem exatamente porque a musculação não exige esforço mental.

São sessões limitadas ao corpo nas quais a existência de neurônios é desnecessária.

Não insinuo que essas pessoas sejam burras. Nada disso.

Elas ESTÃO burras.

Limitam-se temporariamente.

Mas muitos acabam por criar estilo de vida.

Certamente há quem questione tal sujeição, embora a influência social seja mais forte que a afirmação individual.

Atenção que isto não é um manifesto em defesa do sedentarismo.

As atividades físicas devem ser, sim, encorajadas.

Mas atividades genuínas, que tenham sentido.

A obsessão pelo corpo padrão está mais para doença psicossociológica.

A quantidade de coisas que podem ser feitas no tempo desperdiçado com essas ilusões só reforça a gravidade do hábito.

Se, em vez de músculos, desenvolvessem aptidões intelectuais, artísticas, técnicas e mesmo desportivas, poderíamos ter uma geração física e mentalmente muito mais saudável.

Há cada vez mais corpos desenvolvidos e sarados.

O que me interessa é se há desenvolvimento e sanidade dentro deles.

Desenvolvimento está patente na plena capacidade intelectual. No discernimento, no pensamento complexo e coerente e na sua materialização verbal e escrita.

Sanidade está na afirmação de aspirações pessoais independentes de pressões e padrões estabelecidos.

É um mundo obcecado pela aparência que procura saúde física em enfermidades mentais.

A sua negação é um ato de rebeldia.