Tuesday, November 29, 2016

Por que "abandonei" o Facebook



Como todos devem saber, sempre tive forte presença no Facebook, dele usufruindo fartamente sem qualquer preocupação com noções de privacidade e sem preocupar-me com exageros de utilização, para os quais eu sempre encontrei uma justificativa plausível segundo meu próprio julgamento. Sou um animal comunicativo, necessitado de informação e, sobretudo, de um canal no qual eu possa expressar a profusão de pensamentos, ideias e opiniões que se me acometem impiedosamente. Durante os últimos seis anos, desde que preteri o finado Orkut - que tinha um alcance limitado ao Brasil - em favor do Facebook, a dinâmica da minha vida passou a depender fortemente dele. Graças à sua abrangência, fiz muitas amizades, diversos amores, alguns inimigos e alimentei debates infindáveis sobre os mais variados temas, uns descontraídos, outros tensos. Todos os meus dias começavam e acabavam com atualizações do seu feed de notícias. Pela timeline compartilhei minhas ideias políticas peculiares, meus pensamentos filosóficos, minhas amarguras, medos, vícios e paixões, difundi a minha arte fotográfica e a minha criação poética e todos os detalhes da minha vida, de viagens a sentimentos, de preferências musicais ao fascínio pelas ciências, sem nunca me preocupar com a exposição.


No entanto, o que mais compartilhei no Facebook foi, travestida de todas as coisas já referidas, a criação da minha imagem idealizada. Por mais que o processo tenha sido involuntário, a verdade é que eu tentava desesperadamente passar a imagem pela qual as pessoas me deveriam ver. Não é difícil saber que imagem é essa. Todos conhecem o Juliano como o artista intelectual de espírito boêmio e viageiro, o humanista radical amante das filosofias e dos prazeres mundanos, o entusiasta do ócio criativo e da sociabilidade inebriante. Não que eu não seja isso tudo: decerto tentava apenas reforçar com uma concepção imagética o pendor que me norteia por essência. Mas ninguém vê o Juliano problemático, ranzinza e introspectivo, depressivo e procrastinador, desanimado e rancoroso, trivial, imaturo e instável, decadente e solitário. O Facebook serviu-me de escamoteador, mas, acreditem: também sou tudo isso.


E você, que lê este texto, também. Você também tenta escamotear os seus defeitos e reforçar a noção que os outros têm das suas qualidades. Você também tenta omitir fraquezas, medos e o fato de não querer mais nada além de ter o ego acariciado, varrendo para um canto escuro da mente o latejante sentimento de mediocridade, por mais que se tente enganar pensando que não. A mim não engana e não me convenceria caso se justificasse com a mesma matriz argumentativa utilizada por mim para justificar o meu próprio comportamento. Conheço bem como funciona a negação, acredite. Eu assim agia sobretudo pela publicação de postagens escritas, porque simplesmente sou viciado em escrever e conjeturar ideias. A maior parte das pessoas o faz pela publicação de fotografias de momentos banais desinteressantes e desimportantes, para passar uma imagem em que querem acreditar que seja verdadeira por mais que não seja. Mas são as opiniões imediatistas da notícia relevante do momento que pautam por excelência toda a dinâmica facebookiana. Apesar da preferência à escrita, lembro-me de também publicar fotos de antigas aventuras satisfatórias em momentos de auto-estima diluída, por exemplo. Ou de fazer insinuações veladas sobre outrem por puro rancor ou até por inveja. Mas a evidência de um comportamento induzido na dinâmica facebookiana está muito mais na nossa postura de aceitação como engrenagem desse mecanismo do que em exemplos concretos.


Fui peça dessa engrenagem (e dela tirei muito proveito, nomeadamente para fins de experimentação sociológica e filosófica) até há umas poucas semanas, quando, por intermédio de motivações às quais a alusão é escusada, apercebi-me de quão patéticos somos todos nós que diariamente impingimos uns aos outros, de forma assediante, a nossa patológica necessidade de atenção e de auto-afirmação. Sempre tive certa noção de conteúdos fúteis, como auto-retratos em frente ao espelho, fotografias de comida, memes de auto-ajuda ou mensagens monossilábicas intimistas. Todavia, fui apresentado a um sentimento inédito; uma verdadeira revelação: o Facebook, ou melhor, a dinâmica facebookiana, nos está desumanizando, castrando a nossa essência e o nosso verdadeiro caráter. Estamos sendo sistematicamente padronizados, transformados em sujeitos rasos, cheios de manias narcisistas, arregimentados e programados para reagir a qualquer coisa no imediatismo mais indigesto e mais incapacitante da nossa própria racionalidade. Assim, passamos a saber de tudo para não sabermos de nada. Somos induzidos a sentir, num curto espaço de tempo - talvez até em simultâneo -, alegria, amargura, ódio, esperança, preocupação, alívio, desalento, simpatia, solidão, ojeriza, atração, revolta, compaixão, êxtase e o que mais conseguirmos extrair para estar espiritualmente adequados à ordem do dia. Ademais, essa dinâmica configura o que é provavelmente o maior e mais eficaz mecanismo difusor de mentiras e de induções ao erro e à distorção da história da comunicação humana.


Estamos sendo induzidos a preterir a nossa individualidade, o nosso ritmo biológico, os nossos interesses genuínos e a nossa cognição em nome da participação numa aldeia global cacofônica, arrogante, prepotente, chauvinista, egoísta e complexada. E insensível. Extremamente insensível. Especialmente quando nos deparamos com notícias de tragédias humanas. Nossos pesares e nossas duvidosas campanhas de solidariedade são tão efêmeros e supérfluos que não passam, efetivamente, de self-marketing. A dinâmica facebookiana é um cotidiano processo de alienação no qual somos mantidos entorpecidos pela velocidade supersônica de um mundo que se desinforma pela informação, se desconecta pela conexão, se descomunica pela comunicação e se desumaniza pela virtualização.


Isto não seria tão grave caso estivesse confinado ao mundo virtual da Internet, mas a dinâmica facebookiana tem ampla e manifesta propagação nas ruas, na vida real. Tem moldado comportamentos e condicionado noções de afeto. Tem criado pessoas que se relacionam com o mundo como se tudo se limitasse a abrir e fechar abas de portais ou de bate-papo. Tem concebido relações sociais cada vez mais frágeis, efêmeras e, sobretudo, baseadas em cálculos de conveniência. Zygmunt Bauman tem alertado exaustivamente para as armadilhas do Facebook e chamou modernidade líquida a esta concepção de mundo que se nos desaba (talvez se justifique recomendar aqui a leitura de alguns dos seus livros, como o 44 Cartas do Mundo Líquido Moderno). Eu a vejo como parte de um imediatismo mágico.


É possível que a maioria de vocês não se surpreenda minimamente com este texto por já ter uma noção daquilo que ele aborda. Eu não estou escrevendo nada de novo. Isto não é nenhuma nova conclusão avançada e visionária. Não é nenhuma perspicácia acurada e nenhum vislumbre de genialidade. Nada disso. Esta explanação é perfeitamente compreendida pelo que acredito ser até a maioria das pessoas. A diferença seja talvez o estado de consciência, porque assimilei de tal forma a compreensão dessa revelação que agora sinto sincera indisposição perante a simples ideia de atualizar o feed do Facebook. Há semanas que só leio as mensagens privadas que me enviam e absolutamente nada mais.


Sinto profundo desconforto perante posições unânimes ou comportamentos uniformizados que ofuscam qualquer contraditório (uma das consequências da dinâmica facebookiana), mesmo quando se trata de temas pacíficos ou causas sublimes e aparentemente inquestionáveis do ponto de vista moral. Fica-me sempre aquela sensação estranha no ar, aquela desconfiança. Porque, infelizmente, a bondade e a lucidez não são de forma alguma unanimidades sequer à escala da nossa vizinhança, que dirá de uma comunidade tão abrangente conectada num veículo online!


Excluirei o meu perfil? Não, não para já. Não vejo necessidade de uma atitude tão drástica. Tenho muitos amigos espalhados por países distantes que me são suficientemente importantes para que eu deseje manter a confortável sensação de tê-los ao meu alcance, facilmente comunicáveis, e ademais estabeleço uma clara distinção entre a plataforma comunicativa Facebook e a dinâmica facebookiana, que também pode ser dinâmica twitteriana ou youtubiana. Como veículo de comunicação e informação, o Facebook pode ser mantido positivamente mediante uma utilização saudável, construtiva e moderada. Como vício, como portal de egos e como navegação alienante de zombies à deriva de uma correnteza embrutecedora, certamente é desprezível e deve ser evitado. E é exatamente isso que venho informar através deste texto.


Eu sei que há pessoas que me acompanham pelo que escrevo. Sou-lhes grato. Mas sinto-me patético e saturado. Não tenho mais aspirações quanto às batalhas ideológicas e comportamentais na dinâmica facebookiana. Elas são estéreis, fazem-nos desperdiçar energias e até boas ideias. A partir de agora, a capacidade escrita e intelectual que adquiri ao longo dos anos - tenha ela a dimensão que tiver - será melhor canalizada nos meus blogues sob a orientação de projetos literários (que são, genuinamente, o que eu mais prezo nesta vida) obedientes somente à minha própria dinâmica. Eventualmente, deixarei links no Facebook (como o de acesso a este texto - cuja publicação tardou até que eu me tivesse assegurado de que estaria fora da dinâmica facebookiana), porque me importo com a difusão das ideias. Mas não pretendo voltar a entrar na sua dinâmica. Declaro-me voluntariamente exilado dessa aldeia virtual decadente e desumanizadora para encarar o deserto da invisibilidade pelas bordas de uma estrada filosófica rumando em busca da fonte de virtude, onde os laços humanos sejam verdadeiros e duradouros, as ideias redentoras e as capacidades individuais potencializadas.


Boa sorte aos que ficam. De tudo o que possuem que não seja ostentação superficial e egocêntrica, espero que tenham forças para não perder irreversivelmente a própria humanidade.




PS: é possível que este texto seja futuramente alterado ou reutilizado como esboço para um exercício mais amplo.