Wednesday, April 27, 2016

Amor térmico


Eu estava sentado ao léu bebendo um copaço de Cuba Libre quando ela apareceu.

Senti o problema e tentei evitá-lo.

Não voltei a olhá-la e não forcei conversa.

Até que, já numa discoteca abjeta, ela provocou.

Chegara àquela discoteca sem saber por quê

Talvez por ela, inconscientemente.

Quando ela pôs-se ao meu lado e encarou-me sem motivo aparente por alguns segundos, engoli seco.

Disse-lhe algumas palavras sem sentido, esmagado pela pressão.

Em seguida, ela sugeriu outro clube.

Outro clube igualmente abjeto.

Não apenas aceitei, como esforcei-me para convencer ao resto do grupo.

Lá, voltei a convencê-los a pagar os cinco euros da entrada, algo que eu nunca teria feito caso a situação não fosse tão apelativa, digamos.

Foram algumas horas sufocantes entre dança e investidas desesperadas naquele ambiente escuro com música repugnante.

Fumamos um baseado enquanto ela me contava sua triste história.

Prometi-lhe um poema enquanto sofria para não lhe roubar um beijo.

Seu suposto namorado lá estava, totalmente perdido.

Aquela relação é uma evidente fraude e ambos o sabem.

A certa altura, declarei-me sem reservas.

Ela disse-me ser demasiado perigosa para mim.

Disse-lhe para eu ter cuidado.

"Foda-se o cuidado! Meu pulso pulsa por este perigo." 

Então percebi que estavam todos apaixonados por ela.

Todos!

Rapazes, moças...

Era ridículo.

Deixei-a em paz.

Não queria compactuar com a intromissão e com a inconveniência.

Era seu direito estar ali em paz.

Passei a ignorá-la e ela, então, passou a procurar-me.

Acariciava-me as costas quando eu passava por ela sem olhar, ali naquela pista de dança infestada de abutres.

Recuso-me a ser mais um.

No dia seguinte acordei com 39 graus de febre.

Dores por todo o corpo.

Uma gripe tão simbólica. 

Febre de amor, diriam poetas.

E eu sou poeta.

Escrever-lhe-ei o prometido poema.

Homenagem merecida a quem me comove.

Mas definitiva.

Espero não voltar a vê-la.

Mas sei que voltarei.


Tuesday, April 19, 2016

Há dias que não deveriam acabar


Hoje levantei excepcionalmente cedo, às 16h, para preparar-me e às 19h ir ao Passeio das Virtudes encontrar uma polonesa chamada Greta com o nobre propósito de ensaiarmos músicas com voz, violão, ukulele e seu mini-berimbau, como combináramos numa das muitas noites ébrias.

Meu desejo era fazê-la cantar Reconvexo e Você é Linda, de Caetano Veloso.

Lá cheguei e vi Greta acompanhada por Lola, uma belga que já me havia mostrado seus dotes vocais.

Ela relutava, dizendo que até as gaivotas fugiriam da cidade quando soltasse a voz.

Duvidei, porque algo nela me denunciava talento.

Porém, para deixá-la mais cômoda, sugeri que saíssemos daquela pequena pracinha por haver pessoas à volta cuja presença inibia a nossa entrega ao exercício. O Jardim das Virtudes, localizado ali ao lado, era bem mais apropriado e protetor do acanhamento natural de quem não se garante nessas lides musicais.

Seus portões já se haviam encerrado mas não eram obstáculo a ninguém minimamente obstinado a adentrar aquela jardim em declive socalcado. Como eu já havia feito inúmeras vezes, saltamos um muro de pedras pelas traseiras e subimos alguns níveis de solo até chegarmos ao um espaço onde, aliás, costuma haver concertos no verão.

Greta acanhou-se perante Caetano, culpando seu débil português com sotaque polonês.

Deixei passar, embora ainda volte à insistência.

Com a ajuda de Lola, tocamos o que surgia na mente e era possível "arranjar":

Allelujah (Leonard Cohen), Nantes (Beirut), Hit The Road Jack (Ray Charles), Valerie (Amy Winehouse), Minha Jangada Vai Sair Pro Mar (Dorival Caymmi) e fragmentos de mais um punhado de canções.

Apenas o lusco-fusco nos fez abandonar o jardim e regressar ao passeio para bebermos algo num barzinho.

Lola e eu bebemos cerveja. Greta bebeu refresco - dissera-me que estava tentando evitar álcool durante a semana porque era muto "degredo".
 

Na saída do bar estava uma menina sentada nas cadeiras da esplanada, sozinha, dedilhando timidamente um ukulele quadrado, deveras distinto.

Greta e Lola reconheceram-na do coral de que fazem parte.

O cumprimento alongou-se em mais uma sessão musical, agora num quarteto.

Ela também falava português com sotaque estrangeiro.

Pensei, inicialmente, que fosse polonesa - ou ao menos eslava -, talvez pelo rosto arredondado e cabelos dourados.

Era italiana.

Repetimos algumas músicas que tocáramos no jardim.

Só após as 23h nos despedimos. Eu, tonto de fome, praticamente me havia convidado a jantar na casa de Greta, prometendo-lhe cozinhar.

Mas as altas horas tornavam o plano inconveniente.

Despedimo-nos, todos, em frente à Reitoria; Greta foi para um lado, Lola para outro, e eu segui pelo mesmo caminho da italiana.

Ela se aprontou a sugeriu que eu jantasse em sua casa, dizendo que havia comida já feita, embora não por ela.

Aceitei.

Sua companhia agradava-me imensamente.

Recheamos o caminho com nossas conversas mágicas de dois seres viageiros carregados de aventuras nômades.

Ela me disse que construíra aquele ukulele com as próprias mãos, e que estava completando um ano desde que chegara a Portugal de bicicleta, também fazendo o caminho de Santiago.

Seu semblante jorrava entusiasmo artístico.

Contei-lhe das minhas fotografias e dos meus livros.

Já em sua casa - um enorme casarão velho habitado por gente alternativa e vigorosamente dada ao do it yourself -, servi-me da comida que preenchia três ou quatro panelas grandes.

Curiosamente, tudo era vegano: arroz, legumes, sopa e salada.

Comi um prato generoso e repeti a dose por continuar insaciado e, sobretudo, por querer continuar a conversa com aquele ser amoroso.

Ao fim, adiantei-me na ideia de lavar a nossa louça, e enquanto ensaboava um prato lembrei-me de que sequer sabia o seu nome.

"Margherita", disse-me após eu perguntar.

"Sabe, tenho nome italiano: Juliano", informei-lhe.


"Mas é Juliano, não Giuliano".

Já passava da meia noite quando decidi ir embora para não correr o risco de alongar-me abusivamente.

Ela, então, me levou à oficina onde fabricara seu ukulele. Havia vários outros ukuleles e algumas guitarras.

Era uma carpintaria gerida por gente da casa, onde às vezes aconteciam workshops de construção de instrumentos com madeiras recicladas.

Fascinante! 

Depois mostrou-me a sala de ensaio do coral e me convidou para a próxima sessão.

Despedi-me com dificuldades, louco para ficar.

Sua calma, sua vozinha, seus gestos bondosos, sua confiança...

Tudo me encantava.

Seu belo rosto rechonchudinho e meigo também não me ajudava a escapar.

Ela também não parecia nada ansiosa para que eu fosse embora.

Mas teve de ser.

Regressei ao centro e encontrei dois amigos brasileiros:

"Juliano, estávamos falando mesmo de você. Quer dizer, do seu braço".

Falavam, na verdade, do George Orwell.

Tenho-o tatuado no braço direito.

Depois segui um outro amigo brasileiro que estava na companhia de três francesas. Todos muito bêbados.

Fomos à Lomo, o meu novo bar favorito na cidade, onde uma DJ também tupiniquim passava música.

"Hoje você vai ver a diferença", disse-me enquanto a cumprimentava, referindo-se ao seu repertório diferenciado daquele que eu conhecia das noites em que ela atuava no Armazém do Chá.

De fato, incomparável.

João Gilberto, Novos Baianos e forró de raiz.

Pareceu uma homenagem propositada para o desfecho do meu dia.

Fiquei pouco tempo, porque queria ir à minha antiga casa encontrar as minhas amigas Chiara e Christine - italiana e austríaca respectivamente -, que me haviam prometido uma noite de bebedeira.

Também para buscar o cartão postal que, segundo Christine, chegara à casa em meu nome, provavelmente enviado, como sempre, por algum amigo de algum canto do mundo interessado em colaborar com a minha já enorme coleção, mas portando um endereço meu desatualizado.

Segui para lá, não sem antes levar o queixo ao chão com a performance da minha amiga portuguesa Celina, que começara a aprender a dançar forró havia um ano e já mostrava uma desenvoltura impressionante.

Quando vejo essas meninas europeias dançando tão genuinamente e cheias de flexibilidade nas ancas um ritmo da terra onde cresci, não consigo evitar certa vergonha melancólica.

Ao chegar à casa, percebi, pelos vidros da porta de entrada e das janelas, que não havia qualquer luz acesa.

Passavam das 02h.

"Sacaninhas preguiçosas", pensei, e sorrindo segui a pé o habitual rumo do meu atual esconderijo, o mesmo de quase sempre.

Há dias que parecem conspirar de todas as formas para nos provar que a magia da vida pode estar nas pequenas coisas e onde menos esperamos.

Dias tão ricos como meses inteiros.

Dias de substância.

Solidamente líquidos.




Thursday, April 14, 2016

Checa ou Chéquia?


Impressiona-me a quantidade de pessoas que ainda acham que a Checoslováquia existe. 

São, sobretudo, pessoas mais velhas, que viveram a Guerra Fria.

Já fui abordado por professor universitário de GEOGRAFIA me perguntando quando eu regressaria novamente à Checoslováquia.

Pior ainda: já conheci pessoas que creem na existência da Checoslováquia, da República Checa e da Eslováquia ao mesmo tempo, como três países diferentes!

Cheguei a encontrar, EM PRAGA (!!!!!), um português, um espanhol e um brasileiro que tinham certeza de que estavam visitando a Checoslováquia.

Para mim, a palavra Checoslováquia é o nome de país mais bonito do mundo. Tanto que a origem do meu enorme apego pela República Checa vem exatamente do seu nome quando ela estava unida à Eslováquia, embora esta, por sua vez, nunca me tenha despertado o mesmo fascínio.

A palavra Checoslováquia já não tem mais sentido, mas se a República Checa realmente adotar Chéquia, será outro nome para confundir ainda mais os menos atentos.

(No Brasil ainda colocamos o T antes do C, porque só assim conseguimos reproduzir foneticamente o "Č" dos originais Československo ou Česká Republika. Esse acento circunflexo invertido se chama haček (hatchek) e faz a letra C ser pronunciada "tch". Há várias outras letras que levam esse acento e, enfim, sobretudo a pronúncia da letra Ř é um pesadelo e um feito extraordinário, sendo praticamente necessário um curso inteiro só para aprendê-la)

Agora imaginem se a Eslováquia tivesse popularizado seu nome como República Eslovaca.

Haveria gente falando em cinco países: Checoslováquia, República Checa, República Eslovaca, Chéquia e Eslováquia. Todos independentes e pertencentes à União Europeia.

Bem, alguns diriam que são todos países comunistas. Sobretudo no Brasil, com essa galerinha que ainda acha que a União Soviética existe e manda as pessoas de esquerda irem morar lá.

Por outro lado, caso o nome Chéquia seja adotado, perderemos a oportunidade de fazer piadas sobre outros significados obscuros da palavra "checa".

Valerá a pena?

Wednesday, April 13, 2016

O sentido da calçada


Se houve algo expressamente característico da minha vida pré-adulta, foram as mudanças de residência. Até aos 18 anos, eu já havia vivido em 9 habitações, 4 cidades e 2 estados diferentes. 

Uma mudança a cada 2 anos. 

Além, claro, do meu irmão, não conheço ninguém que tenha experimentado tantas deslocações com tão tenra idade. 

A permanência mais longa foi justamente na primeira habitação, na Bosque da Saúde, em São Paulo: 5 anos.

Após os 18, tudo se tornou ainda mais instável. Nestes já 15 anos de Europa, experimentei 17 mudanças. Mais de uma por ano.

6 cidades e 4 países. Uma loucura sem muito sentido.

Ao todo, nos meus 33 anos, foram 26 mudanças, 10 cidades e 5 países. 

Não estou longe de uma mudança por ano. É quase uma cidade a cada 3. Um país a cada 6,5.

Simplificando, a minha vida divide-se em três: os primeiros 18 anos no Brasil, os primeiros e problemáticos 5 em Portugal e o nomadismo europeu, ainda em curso, temperado pelo hedonismo - mais utilitarismo, aliás - semeado em mim pela boêmia de Praga.

Decidi utilizar algarismos e não seus respectivos nomes por extenso para reforçar a loucura. Tantos números sem sentido...

E não, não sou filho de diplomatas ou de milionários. Venho de uma família pacata e desmembrada em vários pedaços o tempo inteiro. É difícil explicar tanta mudança e nem este é o intuito agora. Os meus devaneios concentram-se na percepção de cada lugar por mim habitado. Na minha relação com eles. 

Ou, como costumo dizer, no "sentido da calçada".

E o que seria isso?

"Sentido da calçada" é um termo surgido numa qualquer das minhas noturnas caminhadas, ao me aperceber da aflição que me acometia a falta de intimidade com o entorno da residência em que mais tempo habitei. Nos últimos 13 anos, tem havido uma habitação predominante, da qual sempre fujo, mas com cada fuga tendo sempre uma respectiva volta - geralmente motivada por insustentabilidade financeira. 

Essa habitação, situada na cidade do Porto, é o berço das minhas inquietações filosóficas inerentes à percepção do entorno. Até então, as exceções pouco marcantes ditavam a regra do apego à vizinhança. É inegável a maior dependência física e emocional de uma criança ao seu local de residência e isso explicaria parte da problemática. Porém, a falta de identificação não pode ser ignorada.

Quase todas as ruas e bairros que me acolheram no Brasil tiveram a minha imediata aceitação e adaptação e eu me familiarizava profundamente com cada esquina, rua, calçada, quabra-mola, esgoto, beco, muro, matagal e, claro, rosto. O meu entorno era, por defeito, o meu mundo. Era onde eu encontrava amigos, inimigos, amores, heróis, ideias, ilusões. Era o antro de cultura e de vivências. Não havia Internet nem telefone celular. Havia o hic et nunc.

No restrito sentido deste devaneio, as palavras bairrismo e provincianismo são-me vitalmente caras e aconchegantes. Porque fui mesmo bairrista e provinciano às últimas consequências na utopia de estoicamente tentar preservar todos os elementos do meu mundo. Eu tinha adoração pelo entorno mais próximo e sentia-me profundamente ligado a ele. As mudanças, pontuais ou determinantes, não eram celebradas: pelo contrário, afetavam-me negativamente e ceifavam bons bocados de identificação, como se lentamente me afastassem de uma reconfortante rotina consolidada e introduzissem boas doses de incerteza. Por exemplo, quando os muros baixos e carcomidos do meu querido Edifício Ágata, no Parque Diamante (Aracaju), foram bisonhamente transformados em uma muralha de três metros de altura por um síndico insolente metido a megalómano, e a vegetação circundante em pátio azulejado, tudo perdeu o sentido. O meu apego a características como solo irregular e permeável, matagais vadios e calçadas descontínuas era sempre profundo e estabelecia uma relação de pertença mais forte do que qualquer delírio patriótico. Eu via a rua como uma extensão do meu próprio quarto e todos os elementos, desde lixo a carros, tinham uma disposição que obedecia ao propósito de criar ambiência. Qualquer modificação era estranhada e recebida com repulsa, como uma interferência dissonante.

Nesse sentido, além de bairrista e provinciano, assumo também o meu conservadorismo.

É deveras interessante o jogo de palavras, não? Eu, bairrista, provinciano e conservador. Três palavras que me causariam extrema repulsa noutros contextos, neste servem para tão assertivamente me qualificar.

Porém, da mesma forma que eu não admitia alterações no meu entorno, quase todas as mudanças tão amargurantes eram procedidas por rápida aceitação e adaptação, conquanto se normalizassem como cicatrizes, Apesar de tímido, a sociabilidade sempre me incluía com facilidade a cada nova vizinhança e me destacava no centro dela. Nunca fui um líder, nunca fui popular. Nunca fui o elo mais forte, o macho-alfa, a figura mais influente do bairro. Todavia, curiosamente, tudo acontecia à minha volta, como se as vivências dependessem da minha presença para se desenvolverem. Carisma? Talvez. O que sei é que, involuntariamente, sempre fui um animador, um agitador, mesmo evitando assumir qualquer suposta aptidão nesse sentido.

Hoje, as coisas acontecem mais ou menos da mesma maneira, embora noutros contextos. A rua que há quase catorze anos possui o meu endereço "oficial" é uma representação perfeita da minha desconexão com a cidade liquefeita em um caldo social volátil que praticamente se evapora (gosto de brincar com os estados físicos da matéria: de certos recantos seminais de solidez, a minha vida parece ser sempre sugada para o gasoso quando se desmancha na liquidez baumaniana). Não há nada nela que eu reconheça como familiar. A vizinhança é difusa e estranha. Não me recordo de quase nenhum rosto. Não me relaciono com ninguém. Não tenho um único amigo. As escadas do meu prédio são testemunhas da (des)convivência orwelliana entre vizinhos. As calçadas não possuem identidade. São frias passarelas sem afeto e sem pegada social

Por assim o serem, elas me remetem exaustivamente às calçadas do meu passado, das quais me lembro de detalhes tão singelos quanto singulares e marcantes.

A minha busca pela plena adaptação à vida europeia é uma busca pelo sentido da calçada. É uma utopia, e ainda que, como tal, seja inalcançável, configura o compasso dos meus passos pelas calçadas da vida. Embora muitas vezes descontínuas, esburacadas, escorregadias, frias e inexpressivas, elas são uma só e me conduzem ao cosmopolitismo, ao multiculturalismo e à diversidade. Deambulo ardoroso, quiçá desnorteado, no pântano que demarca dois territórios vizinhos conflitantes: a sólida planície dos ventos brandos e o vale das incertezas, por onde a fugacidade redesenha em leito de cheia toda a paisagem.

Entretanto, sempre me flagro pensando se, caso a minha vida não se tivesse tornado este nomadismo frenético, eu não estaria, ainda hoje, passando as tardes sentado no meio fio de uma calçada amiga. A minha cabeça permitiria? Sem a contaminação das viagens e das vivências multiculturais, pode ser que sim. Mas custa-me a acreditar que eu me reduziria à pacatez de uma calçada cheia de sentido e sem nenhum caminho que me conduzisse à descoberta da própria interiorização que hoje me permite o capricho pequeno-burguês desta divagação.

"Eu quero o cheiro das manhãs da minha terra", como diz a música da banda sergipana Cata Luzes. 

Talvez o que me desconforte seja saber que, entre tantas casas, não tenho nenhum lar.

Ou talvez seja apenas a nostalgia latejando nesta cabeça exageradamente inclinada ao ócio.

Com efeito, tenho total consciência de que fui um sortudo. Mas reservo-me o direito de desejar não ter sido. Porque esse desejo nada mudará, mas serve para que eu continue vasculhando o espírito humano. É um exercício filosófico e um estopim poético.



Sunday, April 10, 2016

Amor líquido

Existe uma pessoa.

Uma pessoinha.

Alguém que daqui a cem anos, como eu, não terá existido.

Ela passa despercebida pela rua.

Ela não é mais morena ou mais loira.

Nem mais magra ou mais gorda.

Nem mais alta ou mais baixa.

Nem mais bonita ou menos bonita.

Nem mais inteligente ou mais estúpida.

Mas ela tem, sim, algumas características únicas:

É a adulta mais infantil que conheço.

A mais inocente.

A mais divertida e irresponsável.

Seus pés são lindamente feios.

Suas vestes, casuais e surradas.

Não há nada mais anti-sexy que sua dança, patética.

Seus cabelos caracolados são vagabundos, despenteados.

Ela não usa maquiagem - só um leve batom, raramente.

Sua voz é corrosiva.

Seu cheiro, devastador.

Sua existência, insustentável;

Sua presença é nostálgica e sua ausência sufocante.

Seu coração é puro, mas sua cabeça é a absoluta concentração de caos.

Ela é a minha poesia.

Ela é a minha maior angústia.

Por causa dela me relacionei com trocentas mulheres.

E até me apaixonei por algumas.

E também por causa dela me desrelacionei com todas.

Muitas vieram e foram. Muitas vêm e vão.

Ela veio e ficou. Insiste em ficar.

Eu luto para cerrar-lhe a porta; ela entra pela janela.

E sai quando bem entende.

Ela não tem noção.

Eu estou sem noção.

Ela sabe o que é para mim.

Sabe que está acima do meu próprio bem-estar.

Sabe que não é a única apenas por não querer. Por não assumir-se.

A "liquidade" da minha vida evita-me a solidão bucólica.

Evita o meu martírio.

O meu coração é dela.

O meu corpo é dos afetos urbanos.

É de todas.

Cada relutância sua é uma nova sedução que afino e invisto.

Seu comodismo por ter-me garantido é egoísta.

Mas egoísta também é a minha sede. A minha fisiologia;

A minha necessidade de afeto.

Espero-a.

Espero-a sem esperar.

Trato-a no recíproco.

Com a exceção das recaídas - que são, na verdade, regra.

Insulto-a de todas as formas possíveis dentro da minha cabeça.

Ignoro-a para vingar-me da sua inconstância.

Mas me entorpeço na pureza dos seus trejeitos desajeitados.

Amo-a distopicamente.

Como um miliciano catalão amou a mais bela das utopias.

Tuesday, April 5, 2016

Palavras para quê?


Eram quatro da manhã.

A festa, já requentada, assumia ares finais e beirava o apagar das luzes.

Mais da metade das pessoas havia desaparecido; uns, convidados, foram embora, outros, residentes, retiraram-se para seus quartos.

Eu, o não residente mais residente naquela casa onde já habitara, afundava-me numa poltrona, com a mirada ébria desfocada.

Estava, na verdade, frustrado com a retirada da mocinha polonesa que eu pretendia seduzir, justamente quando me afinava à investida.

Havia apenas mais um rapaz - que eu desconhecia - que dialogava com três ou quatro meninas eslovenas e uma austríaca, enquanto outra moça, que chegara à festa com ele, parecia tão perdida quanto eu, indiferente.

Não trocáramos uma só palavra até então.

Fitei-me nela, sem motivo particular.

Quando seus olhos finalmente se dirigiram a mim, vacilei:

Gesticulando levemente com a cabeça para os demais não perceberem, e com ajuda dos olhos, indiquei-lhe o caminho do jardim, num inequívoco convite.

Surpresa, ela reagiu com desdém, quase como se não acreditasse na minha ousadia.

Insisti com os gestos, levantei-me, e fui para o jardim, passando a porta traseira da casa e descendo as escadas até chegar ao pátio escuro que abria caminho ao farto relvado abandonado.

Sentei-me numa cadeira vagabunda não mais de três minutos. Sem receber reação ao convite, regressei à poltrona com um zelado sorriso patético.

Ela voltou a olhar-me e eu novamente gesticulei com a cabeça e com os olhos.

Relutante, ela olhou para as pessoas entretidas na conversa, segurou o sorriso tanto quanto pôde, observou-me por duas ou três vezes novamente até fazer, por fim, um leve sinal positivo com a cabeça.

Num salto, pus-me de pé e novamente dirigi-me ao jardim.

Sentei-me na cadeira e esperei com toda a naturalidade, sem sequer me preocupar com o que diria àquela moça com a qual nunca falara.

Não passaram dois minutos até um vulto baixo, magro e com longos lisos cabelos negros surgir pela porta traseira da casa, descer as escadas, aproximar-se de mim e parar à minha frente, com um sorriso matreiro.

Estendi minha mão direita até alcançar a sua para puxar-lhe em minha direção, fazendo-a sentar sobre mim.

Abocanhamo-nos em beijos curtos e sucessivos.

Aos poucos, minhas mãos invadiam-lhe a blusa e deslizavam pelos seus pequenos seios, e num movimento brusco levantei-lhe a veste e beijei aquelas saliências pouco visíveis sob o breu.

Disso não passou. E nem era preciso.

Aquela conquista silenciosa já era suficiente para celebrar uma noite que até então parecia indistinguível de tantas outras sem sentido.

Após cerca de quinze minutos que revezavam beijos e miradas ora exclamativas, ora marotas, fomos interrompidos pelo rapaz, que da porta a chamava, sem no entanto nos ver.

Recomposta, ela desfez-se de mim e regressou à casa.

Eu fui atrás, despreocupado em relação às outras pessoas, que estavam de saída. Ambos, ela e o rapaz, retiraram-se da casa com elas.

Antes de ir-me embora eu acabaria a noite bebendo a última litrosa de cerveja da festa com a menina austríaca, como ela posteriormente me informaria.

No dia seguinte, com uma ressaca inversamente proporcional à falta de lembranças claras da noite anterior, fui à busca de informações.

Perguntados, os meus amigos daquela casa não sabiam quem era a moça.

À noite saí com dois deles: a menina austríaca e um rapaz alemão, cuja iminente partida da cidade motivara aquele festim.

Numa das mais emblemáticas e frequentadas ruas da noite boêmia da cidade, enquanto discutíamos inclusive com uma polonesa que estivera na festa sobre quem poderia ser a misteriosa mulher, eis que ela surge do meio da multidão diretamente em nossa direção acompanhada de uma amiga, arrancando pequenos sorrisos em todos e provocando-me um ligeiro mal estar que logo acabaria em alívio.

"Italiana", informava-me a polonesa acrescentando seu nome.

Enquanto todos esforçavam fingimento perante aquela situação, ela encarava-me incessantemente e sem disfarce com os lábios levemente esticados, embora semicerrados, num sorriso pacífico.

Cumprimentei-lhe e à amiga, que me informava de que iriam com outras pessoas a um concerto no bar junto ao qual estávamos.

"Precisamos conversar" foi, finalmente, a primeira coisa que lhe disse. E o fizemos, por um breve mas suficiente momento que elucidou o ocorrido.

Não sei bem que fim teve a noite das demais pessoas. Mas ela, a italiana, fez-me companhia, juntamente com a austríaca e o alemão, pelas aventuras em dois bares diferentes até nos despedirmos, não sem antes trocarmos contatos, à porta da sua casa, que era no caminho da "nossa".

E assim mais uma mulher entrou na minha vida.

Que seja bem-vinda, como amiga, como amante.

Não sei.

O importante é que mais poemas virão.

A aventura traçada configura a substância nesta existência de encontros e desencontros.

Minha vida é isto e estou rendido a ela.