Wednesday, April 13, 2016

O sentido da calçada


Se houve algo expressamente característico da minha vida pré-adulta, foram as mudanças de residência. Até aos 18 anos, eu já havia vivido em 9 habitações, 4 cidades e 2 estados diferentes. 

Uma mudança a cada 2 anos. 

Além, claro, do meu irmão, não conheço ninguém que tenha experimentado tantas deslocações com tão tenra idade. 

A permanência mais longa foi justamente na primeira habitação, na Bosque da Saúde, em São Paulo: 5 anos.

Após os 18, tudo se tornou ainda mais instável. Nestes já 15 anos de Europa, experimentei 17 mudanças. Mais de uma por ano.

6 cidades e 4 países. Uma loucura sem muito sentido.

Ao todo, nos meus 33 anos, foram 26 mudanças, 10 cidades e 5 países. 

Não estou longe de uma mudança por ano. É quase uma cidade a cada 3. Um país a cada 6,5.

Simplificando, a minha vida divide-se em três: os primeiros 18 anos no Brasil, os primeiros e problemáticos 5 em Portugal e o nomadismo europeu, ainda em curso, temperado pelo hedonismo - mais utilitarismo, aliás - semeado em mim pela boêmia de Praga.

Decidi utilizar algarismos e não seus respectivos nomes por extenso para reforçar a loucura. Tantos números sem sentido...

E não, não sou filho de diplomatas ou de milionários. Venho de uma família pacata e desmembrada em vários pedaços o tempo inteiro. É difícil explicar tanta mudança e nem este é o intuito agora. Os meus devaneios concentram-se na percepção de cada lugar por mim habitado. Na minha relação com eles. 

Ou, como costumo dizer, no "sentido da calçada".

E o que seria isso?

"Sentido da calçada" é um termo surgido numa qualquer das minhas noturnas caminhadas, ao me aperceber da aflição que me acometia a falta de intimidade com o entorno da residência em que mais tempo habitei. Nos últimos 13 anos, tem havido uma habitação predominante, da qual sempre fujo, mas com cada fuga tendo sempre uma respectiva volta - geralmente motivada por insustentabilidade financeira. 

Essa habitação, situada na cidade do Porto, é o berço das minhas inquietações filosóficas inerentes à percepção do entorno. Até então, as exceções pouco marcantes ditavam a regra do apego à vizinhança. É inegável a maior dependência física e emocional de uma criança ao seu local de residência e isso explicaria parte da problemática. Porém, a falta de identificação não pode ser ignorada.

Quase todas as ruas e bairros que me acolheram no Brasil tiveram a minha imediata aceitação e adaptação e eu me familiarizava profundamente com cada esquina, rua, calçada, quabra-mola, esgoto, beco, muro, matagal e, claro, rosto. O meu entorno era, por defeito, o meu mundo. Era onde eu encontrava amigos, inimigos, amores, heróis, ideias, ilusões. Era o antro de cultura e de vivências. Não havia Internet nem telefone celular. Havia o hic et nunc.

No restrito sentido deste devaneio, as palavras bairrismo e provincianismo são-me vitalmente caras e aconchegantes. Porque fui mesmo bairrista e provinciano às últimas consequências na utopia de estoicamente tentar preservar todos os elementos do meu mundo. Eu tinha adoração pelo entorno mais próximo e sentia-me profundamente ligado a ele. As mudanças, pontuais ou determinantes, não eram celebradas: pelo contrário, afetavam-me negativamente e ceifavam bons bocados de identificação, como se lentamente me afastassem de uma reconfortante rotina consolidada e introduzissem boas doses de incerteza. Por exemplo, quando os muros baixos e carcomidos do meu querido Edifício Ágata, no Parque Diamante (Aracaju), foram bisonhamente transformados em uma muralha de três metros de altura por um síndico insolente metido a megalómano, e a vegetação circundante em pátio azulejado, tudo perdeu o sentido. O meu apego a características como solo irregular e permeável, matagais vadios e calçadas descontínuas era sempre profundo e estabelecia uma relação de pertença mais forte do que qualquer delírio patriótico. Eu via a rua como uma extensão do meu próprio quarto e todos os elementos, desde lixo a carros, tinham uma disposição que obedecia ao propósito de criar ambiência. Qualquer modificação era estranhada e recebida com repulsa, como uma interferência dissonante.

Nesse sentido, além de bairrista e provinciano, assumo também o meu conservadorismo.

É deveras interessante o jogo de palavras, não? Eu, bairrista, provinciano e conservador. Três palavras que me causariam extrema repulsa noutros contextos, neste servem para tão assertivamente me qualificar.

Porém, da mesma forma que eu não admitia alterações no meu entorno, quase todas as mudanças tão amargurantes eram procedidas por rápida aceitação e adaptação, conquanto se normalizassem como cicatrizes, Apesar de tímido, a sociabilidade sempre me incluía com facilidade a cada nova vizinhança e me destacava no centro dela. Nunca fui um líder, nunca fui popular. Nunca fui o elo mais forte, o macho-alfa, a figura mais influente do bairro. Todavia, curiosamente, tudo acontecia à minha volta, como se as vivências dependessem da minha presença para se desenvolverem. Carisma? Talvez. O que sei é que, involuntariamente, sempre fui um animador, um agitador, mesmo evitando assumir qualquer suposta aptidão nesse sentido.

Hoje, as coisas acontecem mais ou menos da mesma maneira, embora noutros contextos. A rua que há quase catorze anos possui o meu endereço "oficial" é uma representação perfeita da minha desconexão com a cidade liquefeita em um caldo social volátil que praticamente se evapora (gosto de brincar com os estados físicos da matéria: de certos recantos seminais de solidez, a minha vida parece ser sempre sugada para o gasoso quando se desmancha na liquidez baumaniana). Não há nada nela que eu reconheça como familiar. A vizinhança é difusa e estranha. Não me recordo de quase nenhum rosto. Não me relaciono com ninguém. Não tenho um único amigo. As escadas do meu prédio são testemunhas da (des)convivência orwelliana entre vizinhos. As calçadas não possuem identidade. São frias passarelas sem afeto e sem pegada social

Por assim o serem, elas me remetem exaustivamente às calçadas do meu passado, das quais me lembro de detalhes tão singelos quanto singulares e marcantes.

A minha busca pela plena adaptação à vida europeia é uma busca pelo sentido da calçada. É uma utopia, e ainda que, como tal, seja inalcançável, configura o compasso dos meus passos pelas calçadas da vida. Embora muitas vezes descontínuas, esburacadas, escorregadias, frias e inexpressivas, elas são uma só e me conduzem ao cosmopolitismo, ao multiculturalismo e à diversidade. Deambulo ardoroso, quiçá desnorteado, no pântano que demarca dois territórios vizinhos conflitantes: a sólida planície dos ventos brandos e o vale das incertezas, por onde a fugacidade redesenha em leito de cheia toda a paisagem.

Entretanto, sempre me flagro pensando se, caso a minha vida não se tivesse tornado este nomadismo frenético, eu não estaria, ainda hoje, passando as tardes sentado no meio fio de uma calçada amiga. A minha cabeça permitiria? Sem a contaminação das viagens e das vivências multiculturais, pode ser que sim. Mas custa-me a acreditar que eu me reduziria à pacatez de uma calçada cheia de sentido e sem nenhum caminho que me conduzisse à descoberta da própria interiorização que hoje me permite o capricho pequeno-burguês desta divagação.

"Eu quero o cheiro das manhãs da minha terra", como diz a música da banda sergipana Cata Luzes. 

Talvez o que me desconforte seja saber que, entre tantas casas, não tenho nenhum lar.

Ou talvez seja apenas a nostalgia latejando nesta cabeça exageradamente inclinada ao ócio.

Com efeito, tenho total consciência de que fui um sortudo. Mas reservo-me o direito de desejar não ter sido. Porque esse desejo nada mudará, mas serve para que eu continue vasculhando o espírito humano. É um exercício filosófico e um estopim poético.



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