Sunday, April 10, 2016

Amor líquido

Existe uma pessoa.

Uma pessoinha.

Alguém que daqui a cem anos, como eu, não terá existido.

Ela passa despercebida pela rua.

Ela não é mais morena ou mais loira.

Nem mais magra ou mais gorda.

Nem mais alta ou mais baixa.

Nem mais bonita ou menos bonita.

Nem mais inteligente ou mais estúpida.

Mas ela tem, sim, algumas características únicas:

É a adulta mais infantil que conheço.

A mais inocente.

A mais divertida e irresponsável.

Seus pés são lindamente feios.

Suas vestes, casuais e surradas.

Não há nada mais anti-sexy que sua dança, patética.

Seus cabelos caracolados são vagabundos, despenteados.

Ela não usa maquiagem - só um leve batom, raramente.

Sua voz é corrosiva.

Seu cheiro, devastador.

Sua existência, insustentável;

Sua presença é nostálgica e sua ausência sufocante.

Seu coração é puro, mas sua cabeça é a absoluta concentração de caos.

Ela é a minha poesia.

Ela é a minha maior angústia.

Por causa dela me relacionei com trocentas mulheres.

E até me apaixonei por algumas.

E também por causa dela me desrelacionei com todas.

Muitas vieram e foram. Muitas vêm e vão.

Ela veio e ficou. Insiste em ficar.

Eu luto para cerrar-lhe a porta; ela entra pela janela.

E sai quando bem entende.

Ela não tem noção.

Eu estou sem noção.

Ela sabe o que é para mim.

Sabe que está acima do meu próprio bem-estar.

Sabe que não é a única apenas por não querer. Por não assumir-se.

A "liquidade" da minha vida evita-me a solidão bucólica.

Evita o meu martírio.

O meu coração é dela.

O meu corpo é dos afetos urbanos.

É de todas.

Cada relutância sua é uma nova sedução que afino e invisto.

Seu comodismo por ter-me garantido é egoísta.

Mas egoísta também é a minha sede. A minha fisiologia;

A minha necessidade de afeto.

Espero-a.

Espero-a sem esperar.

Trato-a no recíproco.

Com a exceção das recaídas - que são, na verdade, regra.

Insulto-a de todas as formas possíveis dentro da minha cabeça.

Ignoro-a para vingar-me da sua inconstância.

Mas me entorpeço na pureza dos seus trejeitos desajeitados.

Amo-a distopicamente.

Como um miliciano catalão amou a mais bela das utopias.

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