Sunday, January 1, 2017

Jardim das Flores Mortas


Um hábito comum que as pessoas têm a cada fim de ano é fazer retrospectivas, ponderações, balanços e planos. O calendário transmite a ideia de que uma etapa da vida se acaba e outra começa, embora não passe de ilusão em grande parte para padronizar comportamentos e manter a todos eternamente esperançosos em melhorias dentro de um estilo de vida que foi perpetrado para os sacrificar. 

Ademais, é impossível, na modernidade líquida, que um ano seja realmente uma unidade tão rígida, uma única etapa. 365 dias passam cada vez mais rápido mas também são cada vez mais complexos. No segundo mês de 2015, por exemplo, eu já implorava desesperadamente para que ele acabasse. No entanto, e em função de uma série de eventos que se foram desencadeando, ele acabou sendo um ano satisfatório, até positivo, cheio de superações e rumos improváveis. Foi um ano experimental (fiz oito tatuagens, um piercing na sobrancelha e outro no pescoço sob a nuca - sim, no pescoço! -, tive vários empregos malucos, etc...), em que a liquidez se fez implacável mas de alguma forma eu parecia conseguir certa estabilidade em meio a todo o caos.

Tudo se diluiria novamente nos últimos dois meses. Posso dizer que 2016 começou, para mim, em Novembro de 2015. Decisões mal tomadas, rumos mal planeados e especialmente prioridades equivocadas...

Já 2016 foi um ano de revelações. Revelações duras como aquele velho pão petrificado que quase nos parte os dentes. E de ainda mais duras aprendizagens. Os dias satisfatórios corresponderam exatamente à duração do festival Andanças nas inóspitas terras alentejanas: sete dias. Todos os outros 358 dias só não foram um total desperdício de tempo e energia porque nos últimos seis meses empreendi projetos literários com a seriedade que nunca antes lhes reservara. Entro em 2017 com dois livros praticamente finalizados e mais dois já bem avançados, além de pretender reeditar pelo menos um dos meus dois livros de poesia.

O legado de 2016, as revelações e aprendizagens, estão ligadas às relações que nós, flores urbanas, estabelecemos neste jardim de concreto cuja impermeabilidade impede que a sua própria podridão seja escoada. Se eu pudesse resumir esse legado em fragrâncias, elas seriam mais a inhaca de traição, egoísmo, falsidade e ingratidão. Conheci o amargo néctar de cada uma delas durante todo o ano e sobretudo (definitivamente) a partir do verão. Fui traído pela pessoa de quem eu era o melhor amigo. A pessoa por quem exclusivamente me comprometera com ideais assentes na noção de empatia durante dois anos. Se nesta vida eu já me sacrifiquei por alguém ao extremo e de forma totalmente desinteressada, foi por ela.

E a retribuição que tive não foi nada além daquelas quatro palavras. Nas coisas simples e insignificantes eu podia ver com clareza toda a perpetuação da injustiça: eu, vegano, cheguei a preparar-lhe alegremente omeletes de ovos e queijo, traindo meus próprios princípios e lutando contra a repulsa que aquilo me causava. Ela, por sua vez, foi a única pessoa de todas as minhas amizades mais próximas que nunca me enviou um cartão postal, apesar de saber da minha coleção e de eu pedir-lhe vezes sem conta. Sou um grande observador das pequenas coisas e acredito que nelas estão as revelações do sentido da vida, além de serem deveras elucidativas dos comportamentos à escala humana.

Não que a gratidão devesse ser uma obrigação. É exatamente o contrário: em relações saudáveis e equitativas ela se manifesta como essência das mesmas. E o mínimo que devemos esperar de pessoas com quem estabelecemos forte ligação afetiva é uma influência não destrutiva em nossas vidas. Pessoas que se apoiam tanto em nós deveriam ao menos estar propensas ao apoio mútuo e à reciprocidade.

Desde que rompi com ela como derradeira tentativa de fazê-la abrir os olhos e repensar a sua postura - o que não aconteceu -, o que havíamos construído se desmoronou e eu cheguei à inequívoca conclusão de que a nossa relação foi um desperdício de tudo o que ela implicava, incluindo inspiração poética. Como se tratava da pessoa mais íntima com quem eu me relacionava, a mais próxima e aparentemente mais cúmplice, toda a percepção das relações sociais foram sacudidas e ainda pairam nas alturas da minha mente, baralhadas e sem sinais de que regressarão aos seus lugares. Descobri definitivamente que aquela intimidade, proximidade e cumplicidade não eram nada mais do que falsidade e dissimulação. Eu era como uma loja de conveniência non stop aberta exclusivamente a um cliente que a ela recorria apenas caso não houvesse outra opção ou caso sentisse que tiraria algum benefício pessoal imediato.

O termo imediatismo mágico, utilizado por mim como complemento ao modernidade líquida, provém exatamente do egoísmo de quem se aproveita maquiavelicamente de pessoas para satisfazer os seus caprichos. Seu comportamento intransigente provocado pela vontade imediata é um dos efeitos mais nefastos do nosso mundo atual, ele próprio em vertiginosa transformação e nela espelhado tão fidedignamente.

Nos últimos meses de 2016 algo mudou dentro de mim. Minha esperança nas pessoas e nas amizades se desintegrou. Andará agora espalhada em pequenos fragmentos flutuantes consoante a direção dos ventos invernais que se fazem soprar. Afastei-me de todas as pessoas, mantendo apenas algumas relações mais esporádicas, porque neste momento não confio sequer na minha própria sombra. Tenho consciência da existência de flores confiáveis, flores genuinamente bem cheirosas. Mas exatamente para não ser-lhes injusto é que tenho procurado afastamento e isolamento neste jardim soturno. Nos últimos meses flagrei-me sendo um elemento negativo na vida de algumas flores justamente devido ao desnorteio causado pelo descomunal desgaste daquela quimera verdadeiramente distópica com uma flor espinhosa a quem eu gostaria de nunca ter conhecido e muito menos deixado estabelecer-se em meu canteiro. Não consigo imaginar neste momento um arrependimento maior do que este.

Até que eu reagrupe a esperança e reassente as percepções poderá levar muito tempo. Talvez 2017 não seja suficiente, embora esta seja a única coisa que dele espero se me puser a fazer desejos como fazem os outros. Mas não sou de superstições. Eu cometi o grave erro de deixar entrar na minha vida qualquer pessoa que se apresentasse com um sorriso simpático. Hoje sei que não posso deixar entrar quem quer que bata à porta, porque vivemos num mundo cujas relações estão submetidas a interesses egoístas, a cálculos de conveniência. Sobretudo, aprendi que comportamentos infantilóides e irresponsáveis são traiçoeiros e devem ser evitados por mais atraentes que possam parecer.

Aprendi também que a minha dignidade e o meu bem estar não podem estar sujeitos aos caprichos interesseiros e calculistas e absolutamente abestalhados de pessoas que não sabem medir a sua pegada social e o impacto das suas atitudes nas vidas que com elas se relacionam. Que maldade e crueldade nem sempre se apresentam como monstros e que podem estar bem disfarçadas com belas máscaras e ter um carisma sedutor enquanto escondem bestialidade e embrutecimento.

Percebi que há flores aparentemente cheias de vida que estão, se não mortas, espiritualmente envenenadas.

Que a ilusão de podermos redimir e transformar pessoas perdidas em vícios perniciosos não passa exatamente disso. São ilusões perigosas e intoxicantes. E que essas ilusões nos podem custar, além da saúde mental e física, a própria relação com pessoas que valem a pena.

2016 mostrou-me que a injustiça é brutal e que a impotência perante ela é corrosiva. Exibiu-se-me a face mais cruel do egoísmo humano. Uma face que desfere sua maldade com indiferença e é capaz de seguir a vida sem sentir quaisquer remorsos.

A introspecção em que agora me encontro responde a duas necessidades: reorganizar-me e finalizar o meu exercício literário sobre o imediatismo mágico, o qual já havia iniciado antes do desfecho dessa história de terror exatamente por eu estar preocupado com o rumo que as relações humanas estavam tomando à minha volta. Tenho desenvolvido o Manifesto sobre o estado físico da matéria (que já tem as partes I e II publicadas neste blogue) como apresentação desse estudo sociológico que tem como objetivo contribuir para o combate à desumanização, no qual se por um lado não nutro ilusões de vitória, por outro garanto leveza na consciência. A forma como estamos numa relação, seja ela qual for, mostra muito daquilo que somos.

Já este texto não é um mero desabafo contra uma situação particular. Ele é parte do estudo, embora uma parte delicada por corroer-me as entranhas. Sua leitura até poderá levar em conta o caso específico, mas sua abordagem encontra grande abrangência na atualidade e certamente poderá ter aplicabilidade em outros casos semelhantes que pautam o nosso mundo. Por conseguinte, desenvolver uma consciência equilibrada sobre o fenômeno social bem identificado é o que pretendo como ponto de partida para o combate à artificialização das interações humanas.

A metáfora das flores não surgiu por acaso. Um dia, há mais de dois anos, fui agraciado com uma flor literalmente morta pela pessoa que fez de 2016 um ano revelador para mim. Como consequência disso, escrevi-lhe um poema intitulado Flor Morta, no qual, apesar do nome, a homenageio. Depois escrevi um livro de poesia chamado Jardim das Virtudes, fazendo alusão a um local da cidade do Porto que nos marcara. Ela é a única pessoa que possui um exemplar físico dele. Nem eu o tenho, porque aos poucos me fui apercebendo de que havia algo substancialmente errado nele. Hoje, desintoxicado da toxidade traiçoeira daquela flor de espírito envenenado, consigo perceber o que havia de errado. Sua reedição tratará de corrigi-lo e seu novo nome será o título que encabeça este texto.

Ele será uma homenagem a todas as flores vivas que exalam benevolência e atuam solidariamente pela harmonia de todo o jardim.

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