Thursday, January 19, 2017

Em defesa da música brasileira


Vou ser bem direto neste texto.

Revolta-me ver lixo sonoro enlatado proliferar-se na Europa (especialmente em Portugal) sob a designação música brasileira

Como brasileiro fascinado pelas genuínas manifestações musicais tupiniquins, sinto-me ofendido a cada vez que alguém utiliza o termo para aludir à poluição sonora das modas estupidificantes que a indústria fonográfica inventa para se encher de dinheiro.

Sim, porque há gente se entupindo de grana com a ditadura da mediocridade que toma conta do mundo do entretenimento. 

O Brasil é um cenário propício para esse tipo de música que não passa de um produto com valor meramente comercial: é para ser vendido durante um período de tempo até que seja substituído por outro produto igualmente sofrível do ponto de vista artístico e cair no esquecimento.

Culpados? Há muitos.

A começar pela indústria que em nome dos seus ganhos rebaixa o cenário musical brasileiro à podridão, ao analfaburrismo. Ela despreza a verdadeira expressão artística do país para transformar vedetas retardadas em ícones fugazes do show de horrores da cultura dominante plastificada. 

Noutro dia abri um video no Youtube de um desses novos hits do que lamentavelmente convencionou-se chamar funk. Tinha mais de cem milhões de visualizações. Cem milhões! A batida exaustiva e igual a todas as outras do gênero servia para ritmar uma voz totalmente artificializada cheia daqueles efeitos que tentam esconder a falta de talento. A letra tinha um qualquer trocadilho pornográfico do qual felizmente não me recordo.

Quando a experiência já passava os limites do insuportável e chegava ao intolerável lançando lufadas de ódio no meu estômago, concentrei-me nos videos relacionados. Abri quatro ou cinco até me dar por satisfeito. Todos tinham dezenas de milhões de visualizações.

Alguns daqueles sons aos quais eu me nego a chamar música não eram de todo desconhecidos, afinal eles costumam ser tocados nos estabelecimentos noturnos da cidade e eu, além de às vezes trabalhar como fotógrafo de balada, tenho atração pelo fel da noite.

É claro que fujo dos locais que poluem a atmosfera e tratam os ouvidos alheios como sanitários. Mas nem sempre dá para escapar. A noite é o cenário das interações sociais e das relações dos indivíduos com as ofertas culturais. 

É aqui que aumenta a minha revolta.

Promotores culturais têm sido COVARDES ao privilegiar essas bizarrices em detrimento da verdadeira música brasileira que é muitíssimo bem representada por diversos músicos talentosos residentes no Porto. É um desserviço à cultura e à arte que indivíduos autodenominados DJs (e que se limitam a pressionar dois ou três botões para ecoar o mais fétido lixo sonoro das modas comerciais embrutecedoras) ocupem o espaço que deveria ser dos verdadeiros músicos que se esforçam para apresentar com qualidade repertórios genuinamente representativos da música brasileira.

É por darem total espaço a essas baixarias que o português e o europeu comum acham que música brasileira é exatamente o lixo que lhes é impingido por quem importa essas contrafações sonoras. Se eu disser a alguém que gosto de música brasileira sem ter a devida preocupação em explicar o que ela de fato é, serei totalmente mal entendido, porque o que está automaticamente ligado ao termo são as porcarias comerciais descartáveis que infestam TVs, rádios e estabelecimentos noturnos.

Houve uma indevida apropriação e os brasileiros residentes no exterior deveriam ser os primeiros a denunciar a transformação de arte em lixo enlatado. Mas não o fazem porque já estão todos muito bem arregimentados pela cultura dominante.

Ademais, é de se lamentar que um público composto por estudantes universitários de classe média, com todos os acessos à cultura facilitados, se limitem a consumir e a difundir essas enganações como se fossem de fato música brasileira. O pretexto é sempre o mesmo: "é dançante". Como se não houvesse música dançante de qualidade. Como se só fosse possível dançar ao som de batidas mecânicas de autênticas máquinas de produção de hits plastificados e de letras fúteis e manjadas, que não oferecem nenhum desafio mental e sequer são engraçadas. São a expressão da mais pura negação à cultura. São o triunfo da tacanhice e da mediocridade sobre a arte e a virtude.

É lamentável que esse público tenha efetiva preferência por lixo sonoro GRAVADO e reproduzido por pseudo-DJs, desprezando noite após noite as verdadeiras manifestações ao vivo de música brasileira.

O apelo à ignorância e ao entretenimento vazio é poderosíssimo. Os ambientes noturnos se formam sob essa nebulosidade. O que se quer é um ruído ensurdecedor e gente rebolando com aquele sorriso patético no rosto. O pior é que esse lixo é reutilizável: há toda uma série de remix do remix do remix por meio dos quais vão sendo reaproveitados pedaços da podridão ano após ano, numa mixórdia grotesca do mais fétido mau gosto.

Ah, mas gosto é como cu: cada um tem o seu.

Balela! Essa é mais uma daquelas frases batidas que cai muito bem para quem tem preguiça de pensar. Equivale a algumas outras igualmente perniciosas, como política e religião não se discutem.

Ora, é perfeitamente possível fazer uma análise técnica da música. Há gêneros que se preocupam mais com letras e outros com melodias. Há expressões meramente instrumentais e há as que têm na mensagem a sua grande espinha dorsal. E depois há as modas apelativas que não possuem qualquer rigor artístico e só existem de fato para dar dinheiro a uns espertalhões que se aproveitam da miséria da cultura dominante.

Esses funks, sertanejos universitários; os ai se eu te pego da vida; os pagodes e axés dos anos 1990. Tudo isso obedece a uma lógica de mercado e não a uma dinâmica cultural. Vão desaparecer com a mesma velocidade com que surgiram, porque ao que tudo indica a capacidade humana em produzir lixo é infinita.

É mais do que uma questão de gosto, aliás. Esses produtos são parte da estratégia de alienação do povo, uma estratégia que o afasta, por exemplo, da filosofia. Manifestações supostamente artísticas totalmente estéreis que não fazem ninguém pensar são um método de controle social.

E antes que alguém pense em me acusar de elitismo, fica a dica: meus gêneros brasileiros de predileção nasceram e se desenvolveram, todos eles, na periferia e em ambientes populares. A começar pelo inevitável samba, que é uma das grandes maravilhas da cultura brasileira. O Hip Hop também está muito bem representado na periferia, com a contundência que o gênero talvez não encontre em mais nenhum lugar do globo.

Noutro dia ouvi não sei quem dizer que não devemos julgar o funk ostentação e pornográfico porque ele tem origem na favela. Eu lamento profundamente que o povo mais carenciado, que tem o acesso à cultura e a arte sabotado, tenha de ser utilizado como escudo de defesa do indefensável. Esse funk (coitado do funk original) não tem virtudes - além de ser descaradamente machista. É espelho das carências intelectuais de um povo relegado à ignorância por elites políticas que não se preocupam em desenvolver verdadeiramente uma educação artística nas escolas e por uma mídia traiçoeira e oportunista que mercantiliza as expressões populares enlatando-as para que sejam vendidas como produtos de entretenimento com forte poder de distração e alienação e nenhum poder pedagógico.

Portanto, não há elitismo na minha crítica. Os lixos sonoros são subprodutos de uma realidade decadente. Como a própria criminalidade. Não pretendo que a favela ecoe em seus bailes a poesia de Chico Buarque, a filosofia de Belchior ou o drama da música clássica. Elas podem desenvolver as suas próprias expressões como tantas vezes já o fizeram sem precisar recorrer à alta cultura. A cultura popular pode ser extremamente rica e perspicaz do ponto de vista técnico caso não se desenvolva mediante os anseios de promotores do mainstream que são autênticos sanguessugas e só querem faturar com a decadência cultural.

Já os estudantes, os jovens de classe média que têm total acesso a tudo o que quiserem ter em termos culturais, deveriam repensar a sua postura. Eles não têm desculpas. São apenas desleixados, preguiçosos e ignorantes. Deveriam perceber que deles depende a difusão cultural. Se consumirem lixo, estarão colaborando para a intensiva produção de esterco vendido como arte. Se souberem ser seletivos, poderão favorecer quem deve ser favorecido, ou seja, os verdadeiros artistas que se sacrificam para carregar o bom nome da música. 

Ou então inventem nomes para esses sons insalubres que ouvem, porque música brasileira não é. Nunca será. A música brasileira é atemporal; não morre e não é enlatada. 

Respeitem a música brasileira e apoiem os seus artistas como apoiam as vedetas descartáveis. 



No comments:

Post a Comment