Monday, April 24, 2017

Crônica de uma visita ébria a Lisboa

Em 2007, como parte de um mochilão do norte ao sul de Portugal, bem no estilo Reconquista, passei duas semanas na Grande Lisboa depois de ter passado por Aveiro, Coimbra, Leiria, Mosteiro da Batalha e Alcobaça e antes de ir pela primeira vez ao Algarve. A companhia era a minha namorada à época, uma checa que meses antes me fizera apaixonar por Praga numa das grandes transformações da minha vida, quiçá a maior.

Ficamos hospedados numa pensão carcomida na baixa lisboeta, pagando 7€ por noite - eram outros tempos, ainda sem o atual boom turístico incontrolável. Num dos dias até dormimos na rua em Cascais. Fazíamos sempre isso nos nossos mochilões pela Europa. Ela gostava. Eu sempre me senti tenso, mas fazia-lhe a vontade.

Desde então, a única passagem que tive por Lisboa resultou de uma viagem de estudos com a minha turma do curso de Geografia em 2009. Uma passagem de ônibus regressando do Alentejo, sem nunca ter chegado a pisar o chão da capital.

Portanto, é correto dizer que eu demorei dez anos para regressar. O motivo (mais um pretexto): uma festa balcânica de duas amigas DJs. A ideia era me acabar na festa e tentar, se me sobrasse um resquício de sobriedade, fazer algumas fotos. Depois eu passaria o Domingo e talvez a Segunda errando pela cidade.

Mas a ideia era errar de forma acertada. Só que tudo deu erradamente errado.

É importante dizer que além de não ter saldo no celular há quase um ano, o aparelho que resiste heroicamente à obsolescência programada está tão viciado que sua bateria não chega a durar uma hora. Fora de casa fico normalmente incomunicável.

Ao chegar, fui encontrar-me com a minha amiga Ana para jantarmos na casa do seu namorado. Desbravei sozinho ruas escuras e estranhamente tensas e vazias, seguindo um mapa com a indicação do destino, ao qual acabei por chegar depois de me ter perdido duas vezes, como grande geógrafo que sou. Ao fundo da rua uma figura acenava para mim. Era a Ana. Eu, radiante com o fim da aventura, suspirei de alívio. Mas de repente quase mergulhei para baixo dos carros estacionados em função do susto que tomei quando um maldito avião passou tão rasante sobre a minha cabeça que quase posso jurar que senti o vento da sua passagem. O barulho era assustador. Eu, ainda meio abaixado, como se tentasse controlar o perigo, revezava o meu olhar entre o céu e o rosto de Ana, que se desfazia em gargalhada com a minha reação ridícula.

E lá fomos jantar. Uma massa integral com pesto e cogumelos frescos.

Havia uma garrafa de vinho. E depois outra. E depois apareceu uma de Bacardi. 

Eu queria ir alegre à festa balcânica, mas só às três da madrugada me toquei de que estava mais do que na hora de partir, após longa conversa sobre a mesa com o casal. O problema era que a festa estava acontecendo a uns bons quilômetros dali.

Chamaram-me um taxi. Aliás, nem era taxi e nem era uber. Era uma outra modalidade.

Na correria, acabei por esquecer-me do celular que deixara carregando. Não fazia muita diferença, entretanto. 

Então começa a breve viagem que acabaria por ser o melhor momento da minha visita a Lisboa. O motorista era um negão de meia idade careca bem encorpado. Logo que entrei no carro já simpatizei com ele. Eu estava profundamente embriagado, mas lembro-me de durante uns quinze minutos empreendermos um debate aprofundado sobre guetos étnicos, violência urbana, turistificação e sobre nossas vidas dentro disso tudo. Eu disse-lhe que me aconselharam a não passar pelo bairro de Chelas. Ele me disse que vivia lá e que isso era uma balela. A conversa foi tão boa que eu torcia para ele ser um daqueles taxistas que fazem o caminho mais longo só para cobrar mais, porque eu queria continuar conversando com ele e àquela altura já me borrifava para a festa.

Mas, infelizmente, a viagem chegou ao fim. Creio que a empatia foi mútua, porque ele insistiu em saber se eu estava seguro de que aquele era o meu destino correto. Até quis sair do carro e entrar lá comigo só para o comprovar. Eu disse-lhe para não se preocupar e com certa tristeza nos despedimos. Não sem antes eu tentar pagar pela viagem e ele ter-me dito que já estava pago - Ana pagara por transferência ao solicitar o serviço, mas com o meu estado de embriaguez ele poderia ter-me ludibriado perfeitamente.

Foi a melhor viagem de taxi da minha vida. Da próxima vez que o apanhar vou pedir para que me leve ao Porto só para estarmos três horas trocando ideias.

Então cheguei à festa: um edifício com aparência de abandono e com o entorno no breu quase total. Era um daqueles lugares em que pessoas normais não só não entram como tentam evitar passar por perto. Logo de cara fiquei fascinado. Adorei o lugar. Não era um bar, nem uma discoteca, nem uma ocupação, nem um centro cultural. Mas era um improviso disso tudo. Tudo ali parecia altamente ilegal e isso me deixou logo radiante.

Lá dentro, as minhas amigas já estavam tão bêbadas quanto eu. Francamente, de pouca coisa me lembro. Era um espaço escuro. Não estava completamente lotado, talvez pela hora avançada, mas pessoas chegavam e partiam a todo instante. Não sei bem o que fiz por lá. Só me lembro de ter encontrado uma das coordenadoras do meu grupo de jornalismo e audiovisual do festival Andanças. Também lembro de me ter convencido a ocupar um edifício abandonado no Porto e criar um espaço igual àquele. Na altura era a ideia mais sensacional, promissora e excitante do mundo.

As lembranças seguintes já são de um belo dia de sol, sentado numa calçada com as meninas à espera do ônibus para a casa de uma amiga polonesa que nos ia hospedar. Lembro-me de insistir que dormir era para os fracos e que deveríamos ir à Costa da Caparica dar uns mergulhos. Havia um rapaz lisboeta com a gente e ele ofereceu o seu carro para nos levar lá. Mas as meninas não quiseram.

Depois me lembro de acordar no começo da tarde com a cabeça girando. Uma bela de uma ressaca. 

As meninas regressaram ao Porto. Eu, teimoso, decidi ficar e ir chatear a Ana mais um pouco.

E lá fui eu, novamente incomunicável, tentar não me perder pela cidade. Peguei o metrô e nove estações depois encontrei-a. Em sua casa, tomei um banho, fiz um almoço rápido e fomos dar uma volta pela redondezas do Panteão Nacional e da estação de Santa Apolônia, um pouco a norte da famosa Alfama.

Encontrei um grande mural de azulejo junto ao Panteão e fiz lá umas fotos para provar a mim mesmo que estive em Lisboa.

E meu turismo pela capital se resumiu a isso.

Depois me aventurei sozinho novamente pela cidade em busca do terminal rodoviário. Como quem tem boca vai a Roma e eu só queria ir ao Porto, foi fácil. É claro que eu sempre aproveito qualquer oportunidade para edificar uma espécie de retrato sociológico dos locais por onde passo.

De Lisboa, o retrato dessa ébria visita se forma a partir das seguintes impressões:

- O turismo comercial é uma praga nefasta. Ele impregnou Lisboa e Porto da mesma forma e com a mesma intensidade. Tenho cada vez mais ojeriza a essa tendência. Até sinto certa vergonha em andar pelas ruas com a minha máquina fotográfica porque tenho medo de ser confundido com um turista.

- Ao contrário do Porto, que é uma grande vila, Lisboa é uma cidade de verdade, com tudo o que isso acarreta de positivo e negativo. É muito mais cosmopolita e multicultural. Respira-se a urbe. A correria acusa a metrópole em contraste com o aparente provincianismo do Porto.

- A tensão que eu havia sentido ao chegar a Lisboa tem uma explicação: era dia de derby ludopédico. Benfica e Sporting estavam acabando de jogar naquele instante. Um rapaz italiano que vestia a camisa do Sporting havia sido mortalmente atropelado por um torcedor do Benfica nas proximidades do estádio na noite anterior. Essas notícias me causam tanta revolta que cheguei a Lisboa dizendo à Ana que aquele era um dia propício para haver bons avanços no processo de seleção natural, se é que me entendem. Gostar ou não de futebol enquanto atividade desportiva não é a questão. A questão é que o tal neofutebol, ou futebol moderno, através da sua indústria, é um antro de mediocridade e tem promovido a irracionalidade humana com uma bestialidade que já passou todos os limites do tolerável. 

- Andar por uma cidade que eu não visitava há dez anos e encontrar amigos e conhecidos por acaso me transmite uma sensação de inclusão que não sei se é falsa ou verdadeira, mas que se manifesta e cria um certo conforto no momento. Além da coordenadora do Andanças, encontrei uma amiga numa estação de metrô e outra na fila de ingressos do terminal rodoviário. 

- A minha debandada pelo leste europeu, grande culpada pelo longo tempo sem descer ao sul da península, fez com que eu perdesse a quase totalidade dos contatos que tinha em Lisboa. Antes eu conhecia muita gente e agora parece que só o acaso põe rostos familiares no meu caminho.

- Talvez como em toda cidade grande, os lisboetas são mais apressados e não têm a proximidade (ou calor humano) dos portuenses. Isto parece ser um senso comum, embora eu não note uma diferença tão assinalável. Fiz vários experimentos pedindo indicações na rua, perguntando preços ou comprando algo para beber e fui sempre tratado com simpatia e prontidão. 

- Viver próximo a um aeroporto é um terror! Aviões passavam rasante a todo instante sobre a casa do namorado da Ana. Até parecia que faziam tremer o prédio. Lembrei-me logo da cena do filme Seven em que Morgan Freeman vai jantar à casa de Brad Pitt e o metrô subterrâneo faz a casa tremer a cada cinco minutos. Tenho mesmo medo de aviões!

- Já de regresso ao Porto, verifiquei a câmera e encontrei dezenas de fotos da festa, além de fotos na rua e dentro de um ônibus. Embriaguez e câmeras fotográficas podem ser uma combinação deveras elucidativa.

- Foi uma visita meio inútil. Fiquei apenas com um gostinho de tudo o que planeara fazer em Lisboa. Mas uma viagem é (quase) sempre mentalmente refrescante. Do Porto a Lisboa são três horas e meia de ônibus. Todos acham que é uma eternidade e ficam logo impacientes. Inocentes, não sabem de nada. Eles que experimentem fazer Portugal-Rep. Checa por via rodoviária, como certos malucos que temem aviões...

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