Tuesday, April 19, 2016

Há dias que não deveriam acabar


Hoje levantei excepcionalmente cedo, às 16h, para preparar-me e às 19h ir ao Passeio das Virtudes encontrar uma polonesa chamada Greta com o nobre propósito de ensaiarmos músicas com voz, violão, ukulele e seu mini-berimbau, como combináramos numa das muitas noites ébrias.

Meu desejo era fazê-la cantar Reconvexo e Você é Linda, de Caetano Veloso.

Lá cheguei e vi Greta acompanhada por Lola, uma belga que já me havia mostrado seus dotes vocais.

Ela relutava, dizendo que até as gaivotas fugiriam da cidade quando soltasse a voz.

Duvidei, porque algo nela me denunciava talento.

Porém, para deixá-la mais cômoda, sugeri que saíssemos daquela pequena pracinha por haver pessoas à volta cuja presença inibia a nossa entrega ao exercício. O Jardim das Virtudes, localizado ali ao lado, era bem mais apropriado e protetor do acanhamento natural de quem não se garante nessas lides musicais.

Seus portões já se haviam encerrado mas não eram obstáculo a ninguém minimamente obstinado a adentrar aquela jardim em declive socalcado. Como eu já havia feito inúmeras vezes, saltamos um muro de pedras pelas traseiras e subimos alguns níveis de solo até chegarmos ao um espaço onde, aliás, costuma haver concertos no verão.

Greta acanhou-se perante Caetano, culpando seu débil português com sotaque polonês.

Deixei passar, embora ainda volte à insistência.

Com a ajuda de Lola, tocamos o que surgia na mente e era possível "arranjar":

Allelujah (Leonard Cohen), Nantes (Beirut), Hit The Road Jack (Ray Charles), Valerie (Amy Winehouse), Minha Jangada Vai Sair Pro Mar (Dorival Caymmi) e fragmentos de mais um punhado de canções.

Apenas o lusco-fusco nos fez abandonar o jardim e regressar ao passeio para bebermos algo num barzinho.

Lola e eu bebemos cerveja. Greta bebeu refresco - dissera-me que estava tentando evitar álcool durante a semana porque era muto "degredo".
 

Na saída do bar estava uma menina sentada nas cadeiras da esplanada, sozinha, dedilhando timidamente um ukulele quadrado, deveras distinto.

Greta e Lola reconheceram-na do coral de que fazem parte.

O cumprimento alongou-se em mais uma sessão musical, agora num quarteto.

Ela também falava português com sotaque estrangeiro.

Pensei, inicialmente, que fosse polonesa - ou ao menos eslava -, talvez pelo rosto arredondado e cabelos dourados.

Era italiana.

Repetimos algumas músicas que tocáramos no jardim.

Só após as 23h nos despedimos. Eu, tonto de fome, praticamente me havia convidado a jantar na casa de Greta, prometendo-lhe cozinhar.

Mas as altas horas tornavam o plano inconveniente.

Despedimo-nos, todos, em frente à Reitoria; Greta foi para um lado, Lola para outro, e eu segui pelo mesmo caminho da italiana.

Ela se aprontou a sugeriu que eu jantasse em sua casa, dizendo que havia comida já feita, embora não por ela.

Aceitei.

Sua companhia agradava-me imensamente.

Recheamos o caminho com nossas conversas mágicas de dois seres viageiros carregados de aventuras nômades.

Ela me disse que construíra aquele ukulele com as próprias mãos, e que estava completando um ano desde que chegara a Portugal de bicicleta, também fazendo o caminho de Santiago.

Seu semblante jorrava entusiasmo artístico.

Contei-lhe das minhas fotografias e dos meus livros.

Já em sua casa - um enorme casarão velho habitado por gente alternativa e vigorosamente dada ao do it yourself -, servi-me da comida que preenchia três ou quatro panelas grandes.

Curiosamente, tudo era vegano: arroz, legumes, sopa e salada.

Comi um prato generoso e repeti a dose por continuar insaciado e, sobretudo, por querer continuar a conversa com aquele ser amoroso.

Ao fim, adiantei-me na ideia de lavar a nossa louça, e enquanto ensaboava um prato lembrei-me de que sequer sabia o seu nome.

"Margherita", disse-me após eu perguntar.

"Sabe, tenho nome italiano: Juliano", informei-lhe.


"Mas é Juliano, não Giuliano".

Já passava da meia noite quando decidi ir embora para não correr o risco de alongar-me abusivamente.

Ela, então, me levou à oficina onde fabricara seu ukulele. Havia vários outros ukuleles e algumas guitarras.

Era uma carpintaria gerida por gente da casa, onde às vezes aconteciam workshops de construção de instrumentos com madeiras recicladas.

Fascinante! 

Depois mostrou-me a sala de ensaio do coral e me convidou para a próxima sessão.

Despedi-me com dificuldades, louco para ficar.

Sua calma, sua vozinha, seus gestos bondosos, sua confiança...

Tudo me encantava.

Seu belo rosto rechonchudinho e meigo também não me ajudava a escapar.

Ela também não parecia nada ansiosa para que eu fosse embora.

Mas teve de ser.

Regressei ao centro e encontrei dois amigos brasileiros:

"Juliano, estávamos falando mesmo de você. Quer dizer, do seu braço".

Falavam, na verdade, do George Orwell.

Tenho-o tatuado no braço direito.

Depois segui um outro amigo brasileiro que estava na companhia de três francesas. Todos muito bêbados.

Fomos à Lomo, o meu novo bar favorito na cidade, onde uma DJ também tupiniquim passava música.

"Hoje você vai ver a diferença", disse-me enquanto a cumprimentava, referindo-se ao seu repertório diferenciado daquele que eu conhecia das noites em que ela atuava no Armazém do Chá.

De fato, incomparável.

João Gilberto, Novos Baianos e forró de raiz.

Pareceu uma homenagem propositada para o desfecho do meu dia.

Fiquei pouco tempo, porque queria ir à minha antiga casa encontrar as minhas amigas Chiara e Christine - italiana e austríaca respectivamente -, que me haviam prometido uma noite de bebedeira.

Também para buscar o cartão postal que, segundo Christine, chegara à casa em meu nome, provavelmente enviado, como sempre, por algum amigo de algum canto do mundo interessado em colaborar com a minha já enorme coleção, mas portando um endereço meu desatualizado.

Segui para lá, não sem antes levar o queixo ao chão com a performance da minha amiga portuguesa Celina, que começara a aprender a dançar forró havia um ano e já mostrava uma desenvoltura impressionante.

Quando vejo essas meninas europeias dançando tão genuinamente e cheias de flexibilidade nas ancas um ritmo da terra onde cresci, não consigo evitar certa vergonha melancólica.

Ao chegar à casa, percebi, pelos vidros da porta de entrada e das janelas, que não havia qualquer luz acesa.

Passavam das 02h.

"Sacaninhas preguiçosas", pensei, e sorrindo segui a pé o habitual rumo do meu atual esconderijo, o mesmo de quase sempre.

Há dias que parecem conspirar de todas as formas para nos provar que a magia da vida pode estar nas pequenas coisas e onde menos esperamos.

Dias tão ricos como meses inteiros.

Dias de substância.

Solidamente líquidos.




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