Monday, April 24, 2017

Crônica de uma visita ébria a Lisboa

Em 2007, como parte de um mochilão do norte ao sul de Portugal, bem no estilo Reconquista, passei duas semanas na Grande Lisboa depois de ter passado por Aveiro, Coimbra, Leiria, Mosteiro da Batalha e Alcobaça e antes de ir pela primeira vez ao Algarve. A companhia era a minha namorada à época, uma checa que meses antes me fizera apaixonar por Praga numa das grandes transformações da minha vida, quiçá a maior.

Ficamos hospedados numa pensão carcomida na baixa lisboeta, pagando 7€ por noite - eram outros tempos, ainda sem o atual boom turístico incontrolável. Num dos dias até dormimos na rua em Cascais. Fazíamos sempre isso nos nossos mochilões pela Europa. Ela gostava. Eu sempre me senti tenso, mas fazia-lhe a vontade.

Desde então, a única passagem que tive por Lisboa resultou de uma viagem de estudos com a minha turma do curso de Geografia em 2009. Uma passagem de ônibus regressando do Alentejo, sem nunca ter chegado a pisar o chão da capital.

Portanto, é correto dizer que eu demorei dez anos para regressar. O motivo (mais um pretexto): uma festa balcânica de duas amigas DJs. A ideia era me acabar na festa e tentar, se me sobrasse um resquício de sobriedade, fazer algumas fotos. Depois eu passaria o Domingo e talvez a Segunda errando pela cidade.

Mas a ideia era errar de forma acertada. Só que tudo deu erradamente errado.

É importante dizer que além de não ter saldo no celular há quase um ano, o aparelho que resiste heroicamente à obsolescência programada está tão viciado que sua bateria não chega a durar uma hora. Fora de casa fico normalmente incomunicável.

Ao chegar, fui encontrar-me com a minha amiga Ana para jantarmos na casa do seu namorado. Desbravei sozinho ruas escuras e estranhamente tensas e vazias, seguindo um mapa com a indicação do destino, ao qual acabei por chegar depois de me ter perdido duas vezes, como grande geógrafo que sou. Ao fundo da rua uma figura acenava para mim. Era a Ana. Eu, radiante com o fim da aventura, suspirei de alívio. Mas de repente quase mergulhei para baixo dos carros estacionados em função do susto que tomei quando um maldito avião passou tão rasante sobre a minha cabeça que quase posso jurar que senti o vento da sua passagem. O barulho era assustador. Eu, ainda meio abaixado, como se tentasse controlar o perigo, revezava o meu olhar entre o céu e o rosto de Ana, que se desfazia em gargalhada com a minha reação ridícula.

E lá fomos jantar. Uma massa integral com pesto e cogumelos frescos.

Havia uma garrafa de vinho. E depois outra. E depois apareceu uma de Bacardi. 

Eu queria ir alegre à festa balcânica, mas só às três da madrugada me toquei de que estava mais do que na hora de partir, após longa conversa sobre a mesa com o casal. O problema era que a festa estava acontecendo a uns bons quilômetros dali.

Chamaram-me um taxi. Aliás, nem era taxi e nem era uber. Era uma outra modalidade.

Na correria, acabei por esquecer-me do celular que deixara carregando. Não fazia muita diferença, entretanto. 

Então começa a breve viagem que acabaria por ser o melhor momento da minha visita a Lisboa. O motorista era um negão de meia idade careca bem encorpado. Logo que entrei no carro já simpatizei com ele. Eu estava profundamente embriagado, mas lembro-me de durante uns quinze minutos empreendermos um debate aprofundado sobre guetos étnicos, violência urbana, turistificação e sobre nossas vidas dentro disso tudo. Eu disse-lhe que me aconselharam a não passar pelo bairro de Chelas. Ele me disse que vivia lá e que isso era uma balela. A conversa foi tão boa que eu torcia para ele ser um daqueles taxistas que fazem o caminho mais longo só para cobrar mais, porque eu queria continuar conversando com ele e àquela altura já me borrifava para a festa.

Mas, infelizmente, a viagem chegou ao fim. Creio que a empatia foi mútua, porque ele insistiu em saber se eu estava seguro de que aquele era o meu destino correto. Até quis sair do carro e entrar lá comigo só para o comprovar. Eu disse-lhe para não se preocupar e com certa tristeza nos despedimos. Não sem antes eu tentar pagar pela viagem e ele ter-me dito que já estava pago - Ana pagara por transferência ao solicitar o serviço, mas com o meu estado de embriaguez ele poderia ter-me ludibriado perfeitamente.

Foi a melhor viagem de taxi da minha vida. Da próxima vez que o apanhar vou pedir para que me leve ao Porto só para estarmos três horas trocando ideias.

Então cheguei à festa: um edifício com aparência de abandono e com o entorno no breu quase total. Era um daqueles lugares em que pessoas normais não só não entram como tentam evitar passar por perto. Logo de cara fiquei fascinado. Adorei o lugar. Não era um bar, nem uma discoteca, nem uma ocupação, nem um centro cultural. Mas era um improviso disso tudo. Tudo ali parecia altamente ilegal e isso me deixou logo radiante.

Lá dentro, as minhas amigas já estavam tão bêbadas quanto eu. Francamente, de pouca coisa me lembro. Era um espaço escuro. Não estava completamente lotado, talvez pela hora avançada, mas pessoas chegavam e partiam a todo instante. Não sei bem o que fiz por lá. Só me lembro de ter encontrado uma das coordenadoras do meu grupo de jornalismo e audiovisual do festival Andanças. Também lembro de me ter convencido a ocupar um edifício abandonado no Porto e criar um espaço igual àquele. Na altura era a ideia mais sensacional, promissora e excitante do mundo.

As lembranças seguintes já são de um belo dia de sol, sentado numa calçada com as meninas à espera do ônibus para a casa de uma amiga polonesa que nos ia hospedar. Lembro-me de insistir que dormir era para os fracos e que deveríamos ir à Costa da Caparica dar uns mergulhos. Havia um rapaz lisboeta com a gente e ele ofereceu o seu carro para nos levar lá. Mas as meninas não quiseram.

Depois me lembro de acordar no começo da tarde com a cabeça girando. Uma bela de uma ressaca. 

As meninas regressaram ao Porto. Eu, teimoso, decidi ficar e ir chatear a Ana mais um pouco.

E lá fui eu, novamente incomunicável, tentar não me perder pela cidade. Peguei o metrô e nove estações depois encontrei-a. Em sua casa, tomei um banho, fiz um almoço rápido e fomos dar uma volta pela redondezas do Panteão Nacional e da estação de Santa Apolônia, um pouco a norte da famosa Alfama.

Encontrei um grande mural de azulejo junto ao Panteão e fiz lá umas fotos para provar a mim mesmo que estive em Lisboa.

E meu turismo pela capital se resumiu a isso.

Depois me aventurei sozinho novamente pela cidade em busca do terminal rodoviário. Como quem tem boca vai a Roma e eu só queria ir ao Porto, foi fácil. É claro que eu sempre aproveito qualquer oportunidade para edificar uma espécie de retrato sociológico dos locais por onde passo.

De Lisboa, o retrato dessa ébria visita se forma a partir das seguintes impressões:

- O turismo comercial é uma praga nefasta. Ele impregnou Lisboa e Porto da mesma forma e com a mesma intensidade. Tenho cada vez mais ojeriza a essa tendência. Até sinto certa vergonha em andar pelas ruas com a minha máquina fotográfica porque tenho medo de ser confundido com um turista.

- Ao contrário do Porto, que é uma grande vila, Lisboa é uma cidade de verdade, com tudo o que isso acarreta de positivo e negativo. É muito mais cosmopolita e multicultural. Respira-se a urbe. A correria acusa a metrópole em contraste com o aparente provincianismo do Porto.

- A tensão que eu havia sentido ao chegar a Lisboa tem uma explicação: era dia de derby ludopédico. Benfica e Sporting estavam acabando de jogar naquele instante. Um rapaz italiano que vestia a camisa do Sporting havia sido mortalmente atropelado por um torcedor do Benfica nas proximidades do estádio na noite anterior. Essas notícias me causam tanta revolta que cheguei a Lisboa dizendo à Ana que aquele era um dia propício para haver bons avanços no processo de seleção natural, se é que me entendem. Gostar ou não de futebol enquanto atividade desportiva não é a questão. A questão é que o tal neofutebol, ou futebol moderno, através da sua indústria, é um antro de mediocridade e tem promovido a irracionalidade humana com uma bestialidade que já passou todos os limites do tolerável. 

- Andar por uma cidade que eu não visitava há dez anos e encontrar amigos e conhecidos por acaso me transmite uma sensação de inclusão que não sei se é falsa ou verdadeira, mas que se manifesta e cria um certo conforto no momento. Além da coordenadora do Andanças, encontrei uma amiga numa estação de metrô e outra na fila de ingressos do terminal rodoviário. 

- A minha debandada pelo leste europeu, grande culpada pelo longo tempo sem descer ao sul da península, fez com que eu perdesse a quase totalidade dos contatos que tinha em Lisboa. Antes eu conhecia muita gente e agora parece que só o acaso põe rostos familiares no meu caminho.

- Talvez como em toda cidade grande, os lisboetas são mais apressados e não têm a proximidade (ou calor humano) dos portuenses. Isto parece ser um senso comum, embora eu não note uma diferença tão assinalável. Fiz vários experimentos pedindo indicações na rua, perguntando preços ou comprando algo para beber e fui sempre tratado com simpatia e prontidão. 

- Viver próximo a um aeroporto é um terror! Aviões passavam rasante a todo instante sobre a casa do namorado da Ana. Até parecia que faziam tremer o prédio. Lembrei-me logo da cena do filme Seven em que Morgan Freeman vai jantar à casa de Brad Pitt e o metrô subterrâneo faz a casa tremer a cada cinco minutos. Tenho mesmo medo de aviões!

- Já de regresso ao Porto, verifiquei a câmera e encontrei dezenas de fotos da festa, além de fotos na rua e dentro de um ônibus. Embriaguez e câmeras fotográficas podem ser uma combinação deveras elucidativa.

- Foi uma visita meio inútil. Fiquei apenas com um gostinho de tudo o que planeara fazer em Lisboa. Mas uma viagem é (quase) sempre mentalmente refrescante. Do Porto a Lisboa são três horas e meia de ônibus. Todos acham que é uma eternidade e ficam logo impacientes. Inocentes, não sabem de nada. Eles que experimentem fazer Portugal-Rep. Checa por via rodoviária, como certos malucos que temem aviões...

Wednesday, April 19, 2017

Diariamente


Estou na cantina da faculdade, ocupando uma mesa com meus colegas de curso para almoçarmos:

Colega 1: Juliano, de onde você tira a proteína?
Colega 2: Você não fica doente? Já foi provado que isso faz mal.
Colega 3: Isso é uma religião?
Eu: …

Estou na baixa da cidade, jantando com um grupo de amigos num restaurante:

Amigo 1: Você deve ter anemia.
Amigo 2: Você não gosta de carne?
Amigo 3: O que você come? Só salada?
Eu: …

Estou num piquenique na praia com um grupo multicultural de intercambistas:

Pessoa 1: Você é bem magrinho…
Pessoa 2: Nunca provei comida vegana, mas não gosto.
Pessoa 3: Você toma suplementos?
Eu: …

Uma festinha na casa de uns amigos:

Amigo 1: Você vai morrer!
Amigo 2: Prove só um pedacinho deste bife que eu não conto para ninguém.
Amigo 3: Você não sabe o que é bom.
Eu: …

Estou numa noitada bebendo cerveja e me divertindo na companhia de todas as pessoas presentes anteriormente e ainda alguns desconhecidos:

Amigo 1: Eu nunca conseguiria viver sem carne. É impossível ser feliz assim.
Desconhecido 1: Veganos são chatos. E os vegetais também sofrem...
Desconhecido 2: Tenho pena deles. É como uma religião.
Amigo 2: Aquele ali, o Juliano, é vegano.
Desconhecido 3: Por quê você é vegano, Juliano?
Colega 3: Ele não sabe o que é bom.
Colega 2: Nem sexo ele deve fazer…
Todos: hahahahahahahaha
Eu: Sou vegano porque questionei independentemente a nossa relação com os animais e com toda a natureza e percebi que o consumo de carne é insustentável do ponto de vista ecológico e ético, além de poder implicar consequências nefastas para a saúde humana. Sobretudo, sou vegano porque não acredito nos valores antropocêntricos e tento viver de acordo com uma filosofia racionalista de respeito pela vida e pela natureza. Comer é um ato político e devemos ter consciência dos processos implicados na alimentação humana e todas as consequências que eles causam no planeta, na sua biodiversidade e nas próprias políticas de distribuição de alimentos entre nós, humanos.

Ao fim da minha explicação, que só foi dada depois de ter sido pedida:

Amigo 1: Calma, não tente impor a sua dieta.
Amigo 2: Isso é mesmo uma religião.
Colega 1: Já nem se pode brincar…
Desconhecido 1: Com todo o respeito, mas cada um come o que quiser.
Desconhecido 2: Vou continuar comendo carne…
Amigo 3: Veganos são mesmo chatos, só falam sobre isso.
Colega 2: Pois é. Acham-se superiores só porque comem uns legumes.

Eu: Vou buscar outra cerveja.



Lembre-se:

Estigmatizar minorias, celebrar injustiças, disfarçar a ignorância e a preguiça intelecual com desdém e ironias e aprisionar-se em lugar-comum são atentados à inteligência. Desenvolva a sapiência. Busque a compreensão.

Manifesto sobre o estado físico da matéria III - A alienação tecnológica


Provavelmente não acreditaria se, há vinte anos, dissessem-me que um dia teríamos potentes ferramentas de comunicação perfeitamente customizadas e geridas segundo a nossa vontade. Ou talvez até acreditasse, com certa dificuldade para imaginar tal sociedade futurista em que essas ferramentas fossem possíveis. Há vinte anos, toda a comunicação ainda era imposta por meios convencionais encabeçados pela televisão. Foi mais ou menos nessa época que pela primeira vez tive acesso à Internet. Também foi quando descobri as fanzines do submundo. Elas eram formas precárias e comoventes de desenvolver redes alternativas de informação. A palavra rede designa interligações, conexões. As fanzines eram uma forma de conectar o submundo da música (no caso, do Punk) e mitigar o natural isolamento de indivíduos deslocados que procuravam nas tribos urbanas a afirmação da personalidade.

Hoje, a sofisticação das redes só não enterrou totalmente as fanzines porque há ainda espírito resistente neste mundo, embora elas tenham sido reduzidas a um circuito ainda menor que, no entanto, dialoga mais ou menos pontualmente com os novos meios. Mas esse espírito resistente é a exceção que confirma uma regra demolidora: a massificação da tecnologia conectou o mundo e trabalha para o uniformizar e estupidificar. A utopia futurista que há vinte anos era para mim inconcebível tornou-se distopia e é hoje senhora absoluta das nossas vidas. A perversidade já começa aí: em vez de a utilizarmos para facilitar e complementar a sociabilidade e a cidadania, nossa capacidade crítica se dilui e é ela que nos utiliza. Quando submetemos a nossa vida à dinâmica das redes sociais, passamos a ser peça sua: dinamizamos uma monstruosa rede de auto-alienação. Temos sido atores extremamente participativos no processo da nossa própria imbecilização. Caímos na armadilha do consumismo tecnológico e da desinformação pelo excesso de comunicação irrelevante e emburrecedora.

Após um primeiro momento em que a Internet parecia surgir como grande alternativa libertadora ao modelo convencional da televisão, veio o balde de água fria: a indústria do entretenimento seria demasiado poderosa e maquiavélica para desprezar esse potencial. Rapidamente, todo o seu conteúdo massificado não se distinguia do da televisão. Era apenas uma extensão dela; uma forma de diversificar e ramificar o escoamento do esgoto.

A minha primeira experiência com a comunicação virtual se deu no ano de 1999 durante umas breves semanas em que tive aquela cacofônica Internet de discagem telefônica. Sem qualquer orientação para a navegação, acabei por encalhar no célebre bate-papo do UOL. Quem, no Brasil, não se lembra? Aos dezesseis anos, eu tinha uma mentalidade ingênua e residia numa Aracaju que se fechava para si. Era portanto fascinante comunicar com pessoas distantes tão facilmente através de digitação num computador. Eu podia imaginar suas feições e suas vidas. Fiz amigos, senti afeto e até cheguei a trocar correspondência pelos correios convencionais quando a minha família substituiu a Internet pela televisão a cabo por não poder pagar pelos dois serviços - na altura ainda não vinham juntos em um mesmo pacote.

Eu sentia, já naquele momento, a atração que me prendia ao mundo virtual em detrimento do real. A comunicabilidade em tempo real com indivíduos fora da minha realidade imediata sempre me foi estimulante. Depois, quando eu já era imigrante em Portugal, veio o IRC e o ICQ. E o MSN, que para os mais novos é apenas uma referência futebolística. Em meados da década de 2000 surgem as redes sociais. Comecei pelo Orkut em 2005. Foi um fenômeno brasileiro que não vingou na Europa, mas através dele eu pude reencontrar dezenas de amigos de infância e me reconectar ao Brasil. Ele servia-me como doses diárias de nostalgia, embora também tenha sido nele que comecei a participar dos agora insuportáveis debates políticos virtuais. Havia uma comunidade chamada Geopolítica na qual, por mero acaso, duas dezenas de pessoas conseguiram estabelecer um clima propício ao desenvolvimento de debates aprofundados e consubstanciados. Foi exatamente há dez anos. A dinâmica de debate na Geopolítica foi responsável pela mudança na forma como eu encarava a política: passei a compreender a importância do rigor, do método científico e da verdade, embora não tenha deixado de ser idealista. Certo dia, caiu lá de paraquedas um sujeito que provocaria enorme tempestade e faria o seu nível despencar ao rasteirismo hoje normalizado. Seu nome era Rodrigo Constantino. Um desconhecido à época. Vocês devem imaginar a minha cara quando deparei-me com a sua fama alguns anos depois. Os próprios membros de direita da Geopolítica não o levavam a sério e ele foi expulso após algumas suspensões motivadas por insultos a mim e a membros de esquerda.   

Na sequência, associei-me ao Hi5 para estar ligado às amizades portuguesas e ao Myspace para manter-me atualizado no submundo da música. Por último, apenas em 2010 (!) passei a usar o Facebook. De todas essas novas redes sociais, era a que me parecia ter menos potencial, mas, de repente, ela afundou impiedosamente todas as outras e estabeleceu o seu império no tempestuoso oceano da navegação virtual. Sete anos depois, o Facebook é o pão nosso de cada dia. Seu poder de atração parece uma força gravitacional que faz os nossos rostos orbitarem smartphones como se todo o resto à volta fosse uma imensidão de vazio ou de desinteresse. O efeito perverso da conectividade é ela nos desconectar do mundo real em benefício de uma representação seletiva, mecanizada e alienante. A tela do nosso smartphone é mais interessante do que o nosso campo de visão; as mensagens escritas são mais importantes do que quem está à nossa frente; sobretudo, a dinâmica comunicativa e informativa, quase sempre submetida a uma necessidade patológica de exibição e auto-afirmação, esmaga totalmente a nossa avaliação crítica de toda essa dinâmica. A racionalidade tem sido diariamente preterida em nome desse imediatismo que aparentemente nos mantém conectados ao resto do mundo, mas que na prática nos aliena e uniformiza como nunca na história das tecnologias comunicativas.

Como explicar que um instrumento de comunicação potencialmente libertador se tenha transformado em máquina de emburrecimento? Decerto uma parte da explicação está na imposição de modelos substitutos do raciocínio independente, como memes, selfies, frases padronizadas viralizantes e fórmulas de noticiário que se resumem a manchetes sensacionalistas, mas não dá para negar a culpa de cada peça dessa engrenagem. Nós somos os responsáveis pelo seu funcionamento. Nós somos os difusores dos seus conteúdos. Ao contrário da televisão que nos impunha uma programação, nas redes sociais somos nós que dinamizamos aquilo que consumimos. E somos nós que impomos as fórmulas - ou, pelo menos, há uma descentralização inédita em certas escalas, embora os meios de comunicação relevantes estejam cada vez mais concentrados por poucas e poderosas corporações. Recentemente, uma colega me confessou divertidamente que costuma se comunicar com seu namorado pelo Whatsapp apenas utilizando memes e gifs, excluindo mensagens de texto. A novilíngua orwelliana sempre me pareceu uma ameaça real, mas talvez nunca me tivesse sido apresentada assim tão translucidamente.

Talvez tenha sido uma enorme ingenuidade acreditar que povos cheios de vícios e atolados na ignorância e na futilidade fossem dinamizar positivamente um veículo novo de comunicação. Hoje me parece evidente que não se faz comunicação alternativa e libertadora sem mentalidades alternativas e libertadoras.

Então o que temos? Como disse, o escoamento de esgoto de uma tubulação convencional para uma que também já está convencionalizada segundo os padrões antigos que faziam com que as víssemos com esperança.

Acho que faz sentido dizer aqui que, no momento em que escrevo este texto, a notícia mais difundida no Facebook, inclusive por grupos alternativos de ativismo, é referente a um acontecimento no Big Brother Brasil. Muitos dirão que a relevância da notícia supera qualquer apreciação qualitativa do programa. Talvez. A agressão a uma mulher é grave e deve ser denunciada com afinco. Mas pensemos bem: quantas vezes esse programa - que é um dos mais estupidificantes que a indústria do entretenimento já conseguiu conceber - teve mais propaganda gratuita do que nestes últimos dias? E mais: parece que continuamos atrelados a conteúdos alienantes impostos pelo modelo convencional de comunicação.

“Mas, por ser um programa de massas, ele nos oferece a oportunidade de problematizar em larga escala a violência de gênero”. Não discordo. Tampouco concordo com entusiasmo. A violência de gênero e os preconceitos devem ser combatidos em todos os âmbitos e ambientes, mas não creio que seja só a mim que a viralização dessas notícias parece obedecer muito mais a uma lógica de padronização de reações e comportamentos do que a um ativismo efetivo, certo?

Parece-me relevante tal indagação perante uma dinâmica comunicativa gerida pelo (i)mediatismo. Como todas as outras polêmicas, esta durará apenas até que surja outra efeméride apelativa que sirva para vender manchetes e distrair massas. Tem sido sempre assim. Há uma máquina de produção de polêmicas que dita o nosso comportamento e as nossas prioridades. A velocidade supersônica da (des)informação nos impede de fazer análises mais aprofundadas e cuidadosas de temas relevantes, confrontando-nos com o perigo de ficarmos para trás na constante atualização do mundo. Como desenvolver discernimento se as redes sociais nos obrigam a uma imediata digestão da informação produzida? Da relevância à irrelevância há um intervalo cada vez menor. O atraso de alguns minutos pode ser suficiente para que estejamos totalmente desatualizados. Vemos um turbilhão de pretensa informação passar pelos nossos olhos e somos obrigados a engolir tudo sem mastigar, e o resultado disso é a superficialidade e o lugar-comum. Muitos conteúdos requerem raciocínios mais complexos. Como podemos compreender o mundo se não temos tempo para os edificar?

Talvez isso explique a fuga da maioria das pessoas para a futilidade. Criamos um mundo em que a falta de tempo para tanta informação nos induz à alienação. Isto, aliado à indústria do entretenimento e ao consumismo desvairado, resulta na normalização da mediocridade humana. O Facebook tem exercido um papel fulcral nesse processo e assume a dianteira na batalha pelo irracionalismo. Soa paradoxal, mas é perfeitamente observável: dentro de um poderoso veículo de comunicação temos sido induzidos a um comportamento acrítico.

Entorpecidos pela dinâmica facebookiana, quantos de nós se preocupam com a veracidade dos fatos? Quantos analisam a fonte das notícias antes de as difundir? Quem realmente estaciona o cérebro por alguns minutos no acostamento dessa via expressa para analisar criticamente não apenas a credibilidade, mas a relevância das informações consumidas? Se olharmos para a ambiência virtual portuguesa, o tema mais comentado do momento, com larga vantagem, é uma daquelas triviais polêmicas de arbitragem futebolística que faz com que pessoas de meia idade se comportem como se estivessem entrando na puberdade. Para haver uma massificação desse comportamento é preciso que algo nos esteja induzindo a um padrão. Não se trata de alguma entidade obscura que fascina lunáticos teóricos conspiracionistas. Trata-se do modelo da cultura dominante assente na santíssima trindade do Trabalho, Produtividade e Consumismo. Esse modelo impõe o imediatismo nas nossas vidas tresloucadas, em que sacrifício é virtude e ócio é abominação. Impondo-nos correria e insatisfação, este modelo nos impede de construir discernimento sobre o mundo e nos empurra às fugas fáceis à fustigante vida que nos reduz à programação. De certa forma, somos todos uma espécie de Marvin, o andróide paranóide de Douglas Adams, ainda que pouco cientes disso.

Potencialmente, nosso cérebro é um universo de desejos, sentimentos e aspirações, e no entanto somos reduzidos a uma limitação insultuosa pela engrenagem que dinamiza a sociedade. Portanto, não é de espantar que a grande maioria das pessoas viva dentro de uma caixinha muito pequena de interesses. Limitam-se a seguir os produtos culturais impostos pela poderosa máquina de controle comportamental que é a indústria do entretenimento e suas ramificações e/ou variantes. As redes sociais são parte dela. A quantidade de pessoas que as utilizam para fins de entretenimento convencional é nitidamente maioria absoluta. Apenas um número reduzido de indivíduos lhes dá uso verdadeiramente informativo, pedagógico, técnico e artístico. Como resultado, temos a falta de rigor nos conteúdos informativos. A comunicação dá-se pelo rumor e por modelos pré-fabricados de interação. A mentira reina absoluta! E temos uma multidão de adultos infantilizados que reivindicam arrogantemente o direito à opinião sobre temas aos quais negam o estudo com o mínimo de método. Superstições como astrologia e afins, rumores pseudo-científicos de manchetes sensacionalistas, páginas generalistas que reproduzem a programação televisiva, discussões políticas pautadas pelo rasteirismo e pela calúnia, idolatria de vedetas absolutamente patéticas, insuportáveis tretas futebolísticas, toda uma sorte de egolatria patológica de pessoas que querem chamar a atenção a qualquer custo, etc. No meio disso tudo, os conteúdos relevantes e verdadeiramente informativos são escassos e se perdem em um ostracismo automático. São considerados enfadonhos.

É muito fácil fazer um teste para comprovar a mediocridade normalizada. Faço-o muitas vezes, ora intencionalmente, ora por acidente. Qualquer pessoa pode fazer esse experimento sociológico, basta que analisem a reação desencadeada pelas suas próprias postagens: com toda a certeza, as que envolvem algo associado à cultura ególatra (como fotografias de comida, selfies de viagens a locais famosos, imagens de comunhão de amigos que transmitem felicidade, piadas fabricadas com jogos de palavras pré-estabelecidos, textos curtos e geralmente engraçadinhos sobre algo vivenciado ou opinando sobre algum assunto em voga) geram muito mais reações do que informação científica séria, material (escrito ou audiovisual) de valor artístico elevado - e, portanto, fora da cultura dominante - ou abordagens filosóficas de problemáticas políticas. Em geral, as pessoas buscam a diversão fácil e o reforço do ego. O Facebook está organizado para que o nosso cérebro seja travado por um congestionamento de inutilidades e para que sejamos adultos acriançados incapacitados de um entendimento sóbrio e estruturado do mundo. O Instagram, outra potente ferramenta, tem sido reduzida a uma partilha incessante de alimento ao ego. O que poderia ser um poderoso meio de difusão artística é utilizado para oferecermos ao mundo cada momento desinteressante da nossa vida transformado em fotos repetitivas que há muito ultrapassou os limites do patético e talvez até do patológico, porque há pessoas que realmente precisam de algum tipo de ajuda. A extrema necessidade de exibição e auto-afirmação só pode derivar de um distúrbio psico-social. A geração selfie espelha a derrota da virtude humana.

A energia que desperdiçamos discutindo erros de arbitragem ou intrigas pseudo-políticas é absurda. A entrega acrítica aos padrões comportamentais da cultura dominante é o que define a alienação em massa. O que deveria ser um espaço de livre partilha de informação e conhecimento se transformou num antro de auto-imbecilização. As redes sociais são ferramentas de lobotomização e através delas as massas são enfileiradas e zumbificadas. A gravidade desse fato é latejante quando essas redes sociais são a principal fonte de comunicação e informação das pessoas inseridas na modernidade tecnológica. O desperdício do potencial libertador da Internet é tão grotesco que a sua utilização perniciosa tem criado uma sociedade tecnológica de pessoas tão desinformadas e alienadas quanto supomos que sejam comunidades sem acesso a esses meios. Hoje, sinto-me radiante quando ouço alguém dizer que não possui um perfil no Facebook. Olho para essa pessoa com espanto e com certa inveja. É um sentimento semelhante ao de quando alguém me dizia ser ateu em Aracaju. Não ter um perfil nas redes sociais não garante genialidade a ninguém, mas é deveras sugestivo que intencionalmente alguns indivíduos se neguem a fazer parte de uma dinâmica que acima de tudo promove a egolatria. Antes eu achava que era misantropia. Agora estou seguro de que na maioria dos casos se trata de uma postura de assinalável afirmação individual.

Ao contrário do que talvez fosse de se supor, as pessoas não deixaram de ver televisão. Isso é evidente. A diferença é que agora podem interagir em tempo real e trocar opinião acerca dos conteúdos televisivos. A utilização da Internet como extensão da televisão garante que a dominação cultural continue sendo imposta pelos mesmos de sempre. Quando há um importante jogo de futebol, posso saber como ele decorre em tempo real sem precisar em momento algum recorrer à sua visualização. O feed de notícias do Facebook me mantém informado mesmo que eu não queira consumir tal informação. Em tempo real, as pessoas partilham o que se passa na partida. Refiro-me ao futebol porque as reações a ele são particularmente insuportáveis, mas poderia ser outro assunto viralizante qualquer. Vejam a loucura: o próprio Facebook oferece uma ferramenta para controlar os conteúdos que visualizamos no feed, mas isso é extremamente inconveniente para um rebanho que depende dessa dinâmica alienante para formar um protótipo de opinião. Há também quem se vicie em fazer críticas aos conteúdos partilhados pelos seus amigos. A fofoca, a tagarelice e a tentativa de chamar a atenção com pontuais arroubos de lucidez se revezam no mundo da egolatria.

Uma pergunta que faz todo o sentido agora é: “Juliano, por que você simplesmente não desaparece da Internet?”. Bem, não é tão simples assim. Embora esteja contaminada pela mediocridade, a Internet ainda pode ser gerida satisfatoriamente se soubermos tirar dela o que há de positivo. O próprio Facebook contém algumas poucas páginas que se empenham em difundir apenas conteúdo com validade científica ou com elevado valor artístico, por exemplo. Ademais, há o incontornável problema de viver em ambientes multiculturais na Europa: as amizades distantes. O fato é que sobretudo por uma questão de comunicabilidade eu continuo utilizando as redes sociais. A difusão da minha criação artística é outro motivo. Mas eu não estou totalmente convencido de que essas necessidades não sejam uma consequência da dependência que as redes sociais geram. Os meus textos também englobam os meus próprios comportamentos e a auto-crítica é uma constante. Não pode ser diferente para alguém que deseje superar-se em racionalidade e espírito libertário. Todos somos influenciados em algum grau pelo meio em que estamos inseridos. Construir degraus de pensamento independente pode ser o antídoto para não sermos engolidos pela brutalidade dominante.

Parece-me impossível haver um consenso sobre como ter uma atuação dignificante e equilibrada na Internet. Há uma dose de subjetividade incontornável nesta questão. Mas parece-me possível estabelecer parâmetros de razoabilidade. Da minha parte, tento contribuir não fomentando o que tenho chamado de dinâmica facebookiana. Não sei se é o termo mais adequado, mas creio que ele seja de fácil compreensão. Em primeiro lugar, devemos ter uma postura crítica perante as informações. Difundir mentiras é tão grave quanto criá-las. A busca pela verdade dos fatos não deve ser nunca sobreposta pela necessidade imediata de chamar atenção ou de refutar o que quer que seja. Junto com as notícias falsas ou baseadas em rumores, a egolatria é o outro grande problema. Ela é uma deformação intelectual e deve ser combatida com veemência. Sua influência tem moldado uma geração de indivíduos mimados dispostos a chamar a atenção a qualquer custo. Nessa cultura ególatra, a minha opinião política, por exemplo, é menos importante do que o fato de ela ser minha. O que a justifica é ter-me envolvido e não a sua substância. Uma selfie minha numa paisagem natural deslumbrante não é uma celebração da natureza, ela é apenas imagem de fundo para realçar o meu ego. A negação da própria privacidade em nome da exaltação narcisista é o mandamento primordial das redes sociais. Não tenho nada contra a partilha de fotografia e seria estranho se tivesse, já que sou fotógrafo e admito vivermos no que alguns já chamam de Era da Imagem. O problema começa quando utilizamos a imagem fotográfica desesperadamente para tentar convencer o mundo de que somos pessoas interessantíssimas com vidas invejáveis. Essa ilusão parece-me perigosa, e o que mais queremos nas redes sociais é que os nossos amigos a alimentem até estarmos empanturrados de tanta ilusão.

É sintomático e desolador que as atuais gerações sejam as que mais têm acesso à informação em toda a história e ainda assim haja uma quantidade considerável de indivíduos - a grande maioria, suponho - que passa por este mundo sem compreendê-lo minimamente. E pior: apesar de todo o apelo egocêntrico, não conseguem organizar o sentido da sua própria existência. Estão tão ocupados com aparências que se esquecem da essência. Há um pântano de alienação no qual afundamos a todo instante mediante o peso da inconsciência. Ou reinventamos a utilização dos meios de comunicação e a nossa própria postura face ao consumismo tecnológico, ou estaremos condenados à desumanização. De uma forma de comunicação livre dos vícios alienantes depende a consciência que mantém viva a nossa humanidade.


Manifesto sobre o estado líquido da matéria I

Manifesto sobre o estado físico da matéria II - A santíssima trindade