Monday, February 5, 2018

Sobre o sectarismo do ativismo social: resposta ao texto "Sobre o racismo do movimento vegano"


Só para me localizar: sou um homem branco e ruivo, com sete dreadlocks, nascido em São Paulo e crescido na periferia de Aracaju, filho de uma portuguesa com um paulistano criado em Salvador. Portanto, um nordestino de coração e vivência, que sentiu o peso do preconceito quando, na adolescência, regressou ao seu berço com sotaque da terra dourada que o acolhera. Já são dezessete anos de vegetarianismo/veganismo e não tenho nenhum problema com esses termos. Se são uma invenção do Ocidente, creio que os ocidentais deverão celebrá-lo com o orgulho de terem desenvolvido um ideal sublime, ainda que imperfeito como todos os ideais humanos. Particularmente, orgulho-me de ser vegano. Não por boçalidade, mas com a leveza interior de quem assimilou o compromisso de colaborar com uma relação mais justa e harmoniosa entre os humanos e os outros animais.

A primeira vez que li o texto intitulado Sobre o racismo do movimento vegano (clique nele para o ler - é fundamental que o faça antes de prosseguir), publicado no dia 03/01/2016 por Gilza Marques (aka Anin Urasse) no blog Pensamentos Mulheristas, não tive grande reação. Talvez por desatenção, talvez por uma questão de estado de espírito, sei lá. O certo é que o deixei passar, por assim dizer. Isso foi, creio, há uns dois anos, logo após a sua publicação. Porém, a minha reação foi bem diferente quando ele voltou a me cruzar o caminho há alguns meses ao aparecer no meu feed do Facebook, compartilhado por um amigo que o elogiava. Reli-o e, dessa vez, fui invadido por um avassalador sentimento de indignação. Como aquele texto pode ser difundido na Internet pelas mais bem intencionadas pessoas sem ser colocado à prova e sem ser analisado criticamente? Esta questão latejou-se-me até eu assumir o desafio: era evidente que não sossegaria enquanto não escrevesse uma resposta. Confesso ter feito algumas ponderações. Cheguei a medir bem o meu vocabulário para não dar brechas a acusações estapafúrdias. Refleti, principalmente, sobre até que ponto valeria a pena fazê-lo, já que tudo o que eu poderia esperar era, no melhor dos cenários, muita treta, conflito e desavença. E ao decidir comprar a briga - não que eu assim o encare, mas é óbvio que o será para muitos - convenci-me imediatamente de que não podia tergiversar: já que era para fazê-lo, que fosse um texto honesto, direto e claro, baseado em substância, rigor e objetividade. Tinha de ser, especialmente, a desconstrução não só de uma postura agressiva, mas de todo um modo sectário de estabelecer problemáticas. Ao esboçar mentalmente esta carta, não pude deixar de perceber que as minhas críticas e preocupações relativas ao texto de Gilza se estendem amplamente a todos os movimentos sociais, incluindo alguns dos quais de alguma forma faço parte - como o próprio veganismo -, pelo que elaborar esta resposta não foi fácil e muito menos agradável; foi necessário.

A problemática em si é relevante, porque desenvolve uma abordagem que não pode deixar lacuna no debate sobre a questão vegana. E por que não? Porque os vários ambientes sociais tornam o veganismo diverso tanto em sua gênese quanto na possibilidade da sua incorporação. Todavia, já no texto entre parêntesis, ainda antes de Gilza começar de fato a problematização, percebi, para meu desânimo, um teor sectário absolutamente lamentável e inaceitável. Esse teor é o que me motiva a escrever uma resposta apesar de eu estar bem ciente da reação que ela poderá despoletar caso se espalhe com as ondas virtuais da Internet. Contudo, escrevo-a porque carrego comigo duas coisas: 1) não tenho nada a perder, 2) antagonizar em certa medida, como elemento de polemização filosófica, é uma postura que enriquece as ideias e desenvolve os argumentos. Então aqui vou eu, sem querer comprar briga mas sabendo que é quase impossível evitá-la.

Da autora pouco sei. Limitei minha pesquisa para evitar enviesar-me a partir de um antagonismo de qualquer ordem em relação a ela.

Inicio indo direto ao assunto: o movimento vegano tem origem ocidental e elitista? Sim, tem. Outros movimentos com a mesma origem? Socialismo (incluindo grande parte do anarquismo de que sou simpatizante), feminismo, pautas LGBTs…

Os branquelos europeus são geneticamente mais avançados e tolerantes que os outros povos? Não. Apenas puderam usufruir de ambientes sociais com mais abertura ao desenvolvimento das ideias (por uma série de fatores que podem ser tema de outro debate). Sim, o conforto materialista da Europa permitiu à sua população o ócio necessário. Esse conforto estará ligado à exploração dos povos colonizados? Possivelmente. Ou, até, evidentemente. Há calhamaços que documentam a rapina imperialista.

O veganismo poderia ter surgido na África se as conjunturas globais de relação entre povos tivessem ocorrido de outra forma? Provavelmente. Mas o importante é que ele tenha surgido em algum lugar e se por um lado podemos fazer uma ligação histórica deveras apelativa para o associar ao colonialismo, por outro temos de compreender que TUDO o que é cultura de todos os povos do globo interconectados está amalgamada, mesclada e/ou aculturada (utilizarei o termo a partir da acepção positiva de interação cultural, admitindo, porém, que sua utilização tem sido predominantemente negativa em referência a elementos de imposição cultural, pelo que pode ser discutida para este tema a sua substituição pelo termo transculturação). A autora do texto afirma que os escravos fizeram a feijoada com restos de carne de boi e porco. Ora, a origem da feijoada é europeia e o feijão preto era comido originalmente pelos ameríndios. Portanto, a feijoada à brasileira, atribuída aos escravos, já é um elemento de aculturação, de mixórdia cultural. É altamente provável que todos os pratos existentes no Brasil atribuídos à cultura africana sejam uma versão modificada - e enriquecida (não no sentido valorativo; na diversidade mesmo) - com a agregação de elementos europeus e indígenas.

Conforme se avança pelo texto, o teor agressivo só aumenta. Já no primeiro parágrafo a autora diz que a melhor defesa é o ataque e é exatamente a isso que se presta, cheia de convicção de que está corretíssima, como se seu sectarismo devesse ser automaticamente aceite. Ora, talvez como válvula de escape seja um eficaz exercício para descomprimir. Como forma de diálogo é um fracasso que atinge o patético. Não se estabelece debate com agressividade desmedida simplesmente porque sim. Eu não sei quem acusa o povo pobre (quase sempre negros) de ser nazista por consumir carne. Como vegano, quero distância de quem se utiliza de tão rasteiro “argumento”. O que eu já vi fazerem é uma comparação dos métodos de confinamento, tortura e produção massiva de carne, ovos e leite por parte da indústria com os métodos dos campos de concentração. Alguns dirão tratar-se de uma analogia de mau gosto, outros poderão considerá-la assertiva. Eu diria que, dependendo da abordagem e do interlocutor, bem como do objetivo que se pretende, ela pode ser válida. Exemplo: para chocar e chamar atenção a uma realidade perante a qual a grande maioria prefere se empacotar de hipocrisia e fechar os olhos. Se o objetivo for introduzir pedagogicamente alguém ao veganismo, haverá formas menos apelativas e dramáticas e mais razoáveis e construtivas.

Porém, como vegano, também quero distância de pessoas sectárias e autoritárias. A autora utiliza termos como branquitude (empregue claramente de forma pejorativa) e falta de melanina. Se o objetivo é comprar briga, gerar desavenças e agraciar conservadores e a direita inimiga de movimentos sociais com munição, parabéns! O sucesso terá sido estrondoso. E mais: a afirmação da africanidade não implica necessariamente a ofensa primária aos europeus ou a quem quer que seja. Apelos racialistas podem ser uma postura racista, sim. Isto não é um branco reclamando de racismo reverso, já que tal hipótese considero ridícula, lunática e delirante, fruto da ignorância e da insensibilidade social. Historicamente, os povos de origem africana sempre foram postos em desvantagem e o Brasil tem a obrigação de recompensar os séculos de injustiças que infelizmente ainda se prolongam. Todavia, a postura de um indivíduo pode denotar racismo, sim. E a autora do texto, ao enfatizar elementos étnicos e genéticos para diminuir e ridicularizar os brancos especificamente (como se todos fossem já de nascença culpados pelo sofrimento causado aos negros ao longo da história, merecendo, por isso, adjetivações ásperas e constante hostilidade), está sendo, sim, racista. E o é com a petulância de quem acha que se impõe pela infalibilidade automática. A autora deve considerar-se no direito de ofender enquanto todos os demais só têm o dever da aceitação acrítica para não ganharem de imediato os rótulos mais nefastos (e descabidos) que ela decidir distribuir a seu bel-prazer.

Algumas pessoas que comentaram em seu blog não conseguem esconder certo medo de serem elas próprias os alvos diretos das palavras ferozes de Gilza, e, em função disso, transmitem uma clara condescendência e a aceitação mais acrítica de um texto que deveria ser compreendido como sendo, no mínimo, contraproducente. Em alguns casos até é perceptível que estão a ponto de pedir desculpas pela própria existência.

A cultura africana é belíssima e extremamente rica. Particularmente, meu interesse por ela é crescente e meu entusiasmo, especialmente em relação à música, atinge picos de puro deleite. E não há nenhum “mas” condicionando esta afirmação. A cultura africana é maravilhosa e ponto. Também o é a cultura latino-americana, a cultura ameríndia, a dos povos asiáticos, a dos nativos da Oceania e a aculturada. E também é belíssima a cultura europeia, tão diversa, tão multiplicada e amalgamada. A autora diz, lamentavelmente, que a Europa é uma grande vergonha. Já terá ela estado na Europa? Onde, exatamente, sendo que cinco dezenas de países a constituem politicamente? O que importa aqui dizer é que não é preciso humilhar e ridicularizar uma cultura para afirmar outra. A africanidade será sempre brilhante independentemente do juízo apressado e temerário que fazemos de outros povos. O próprio veganismo não pode ser encarado como um bloco monolítico. Há vários veganismos. Há inúmeros ambientes em que eles se desenvolvem e em muitos casos assumem rumos bem distintos. Conheci, nas minhas andanças pela Europa, o veganismo elitista, o místico, o tribal, o veganismo político dos movimentos autônomos, etc. Este último, germinado por certas subculturas musicais, atua em ambientes populares bem longe da elite. Seus adeptos compreendem bem a necessidade de não se desenvolver um discurso que não contemple as dificuldades dos povos carenciados. São pessoas que sabem que não dá para falar sobre veganismo sem contextualização com quem sequer consegue ter uma alimentação equilibrada e decente. Porque também há pobres na Europa, e por mais que não possamos comparar os focos europeus de pobreza com os brasileiros ou africanos, localmente eles são uma realidade dramática. Na cidade em que tenho vivido, o Porto, costumava haver um grupo de veganos que uma vez por semana distribuía comida aos moradores de rua da cidade. E não o faziam em nome de uma caridade egocêntrica. Faziam-no por uma preocupação genuína, totalmente às escuras, longe de holofotes, sem que quase ninguém soubesse, sem aplausos ou posts em redes sociais. Portanto, dizer que o veganismo é racista e elitista, sem considerar a sua diversidade, é injusto. Como é injusto desprezar toda a cultura europeia e reduzi-la a lixo ou a vergonha.

Não há culturas infalíveis e a autora deveria ter a decência e a humildade de perceber e assimilar tal fato. A cultura africana não é infalível. Ela tem os seus muitos defeitos (lembrando que ela própria é, também, muito heterogênea). Como a europeia e a latino-americana ou a ameríndia. E antes que perguntem a que olhos elas são falíveis, eu respondo: aos olhos da sua própria gente em primeiríssimo lugar. Unanimidade cultural em territórios tão vastos e diversificados pode até existir (superficialmente) por imposição política, mas nunca por encaixe natural. E falíveis também são as ideologias e os movimentos sociais, incluindo os movimentos de afirmação da cultura africana. Prova disso é a existência de comportamentos descabidos, intolerantes e sectários como o da autora do texto.

O que Gilza afinal pretende com tanta agressividade? Dividir totalmente os povos? Impossibilitar uma relação equitativa e horizontal entre brancos e negros? Pretende estabelecer guetos étnicos perpétuos incomunicáveis com o exterior? Porque seu texto é de ruptura e não de aproximação. Quer problematizar o veganismo? Muito bem. Particularmente, acho fundamental fazê-lo. Mas com ponderação e cautela. Com racionalidade em vez de emoção. Evitar a convulsão imediatista da raiva incontida é uma virtude que deve ser buscada incessantemente. Tão mais inteligentes e inteligíveis somos quando conseguimos estabelecer diálogos pautados pela razoabilidade. Porque a alternativa é a barbárie, a discórdia, o rancor. Não me parece producente para nenhum movimento social que a relação com o exterior seja feita de forma explosiva e cacofônica.

Se a autora quer falar de história, que primeiramente a conheça antes de espalhar inverdades. Não apenas a história da feijoada foi distorcida, os próprios costumes pré-históricos dos povos também foram apresentados no mínimo sem qualquer rigor. É falso que os africanos tenham sido os agricultores e os europeus os caçadores. Isso é um desconhecimento bizarro de um tópico básico da história, e, para coroar o erro, Gilza ainda tenta argumentar, em novo tom jocoso, que a Europa era incapaz de cultivar em função do seu clima frio. Está tudo errado! A autora - ou quem estiver lendo este texto e acredita na desinformação que ela propaga - que faça uma pequena pesquisa sobre o neolítico. Debrucem-se sobre o Nilo e especialmente sobre o rio Tigres e Eufrates. Eu até ousaria a “presunção” de uma recomendação literária: Ismael: Um Romance Da Condição Humana, de Daniel Quinn. Uma obra que aborda a questão dos pegadores e largadores brilhantemente e de certa forma até dialogando com essa nossa problemática vegana.

Espero que a autora não negue a leitura alegando aversão à proveniência ocidental do autor. A ser esse o caso, restar-me-á dizer que a abordagem da obra destoa fortemente do ponto de vista eurocêntrico. Mantendo-se a negação, só terei a lamentar. Não há debate possível sem boa vontade e sem abertura de todos os lados que dele participam. E antes que a autora me venha acusar de ser um macho branco querendo dar lição a uma mulher negra, reitero que foi ela quem incorreu no erro de escrever um texto agressivo e preconceituoso cheio de falácias e desinformações. É minha obrigação moral corrigir as suas falhas, sejam históricas, sejam argumentativas, e reitero também que não há absolutamente nada que me motive a afrontar qualquer movimento de minorias e de povos ou grupos sociais historicamente estigmatizados. Sempre estive e sempre estarei ao lado deles para colaborar da forma que me for possível. Como nordestino e como imigrante brasileiro na Europa, também faço parte de um grupo minoritário alvo de discriminação.

Entretanto, sempre chamarei a atenção para os exageros, erros, incoerências e sectarismos que se me apresentarem porventura. Todas as pessoas ou grupos que se apresentam a debates devem estar cientes de que são necessariamente passíveis de críticas. A autora que não espere silêncio de conivência, de cumplicidade ou de resignação perante a sua postura autoritária e sectária. Ela está equivocada, está prejudicando o seu próprio movimento, e, como tocou em um assunto que me diz respeito, faz-se perfeitamente compreensível que uma resposta pública eu lhe remeta. Em vez de agressividade, por que não desenvolver uma problematização racional e até científica do tema?

A autora volta a abusar da sua ignorância em matéria de história quando diz que os povos indianos são originários da África mais uma vez como forma de ridicularizar os europeus (aqui ela faz um malabarismo argumentativo grotesco como resposta à suposta alegação dos veganos europeus de que o seu veganismo tem origem oriental). Ora, cara Gilza, TODOS os povos de todos os continentes têm origem africana. Incluindo o branquelo europeu mais carente de melanina. Se você quer estabelecer uma ligação tão imediata entre o africano e o asiático, que o faça também entre o africano e o europeu com o devido e equivalente salto geracional. Não deixe o seu ódio primário à Europa lhe cegar a ponto de provocar esse atropelo de fatos históricos. Quer falar de colonialismo, imperialismo e genocídio? Falemos. A Europa tem uma dívida histórica gigantesca para ser quitada com africanos, asiáticos, ameríndios e aborígenas. Mas o que você pretende enquanto essa dívida não é paga ou não é amplamente reconhecida? Conflito étnico? Isolamento cultural? Quer ficar agredindo e insultando gratuitamente a qualquer pessoa que você julgue ser parte de uma estirpe pan-caucasiana?

Sobre os primeiros povos da Índia, não sei se a autora se refere à civilização harapense, à qual a historiografia atribui os primeiros assentamentos. Sabe o que está na origem deles? Sim, a agricultura. Estamos falando do século XXXII a.C., bem antes, portanto, de ágoras e senados, que dirá de Tordesilhas ou rotas de especiarias! Percebe a defasagem temporal?

Antes do surgimento da agricultura, há 10/12 mil anos pela Ásia e Oriente Médio, os povos africanos pré-diáspora eram também caçadores-coletores. Nem existia civilização europeia para ser comparada quanto às práticas de subsistência. A Europa assentada só seria possível graças às práticas sedentárias originadas pela agricultura, cuja origem, lembrem-se, antecede em muito a civilização ocidental. A não ser que a autora acredite que tenha existido povos europeus anteriores à diáspora africana inicial (o que seria uma afirmação surpreendente), e que a agricultura tenha origem africana já na gênese da humanidade, é incorreto estabelecer essa comparação entre africanos agricultores e europeus caçadores. Repito: os africanos também foram caçadores-coletores.

A autora também precisa ser mais específica quando se refere ao mundo de gelo que cobria a Europa nesse período, porque o último máximo glacial ocorreu há vinte mil anos, ou seja, vários milhares de anos antes do surgimento da agricultura. Com o seu advento, a temperatura na Europa já permitia o povoamento. Aliás, de acordo com recentes estudos de linhagem, o repovoamento da Europa teria começado há dezenove mil anos, e sabe de onde teria vindo um grande contributo? Do Oriente Médio. Sim, povos não europeus ajudaram a repovoar a Europa muito antes da agricultura ter sido desenvolvida. Seguindo a preconceituosa linha de raciocínio de Gilza, eles teriam contribuído durante milênios para a violência característica da cultura branca.

Ademais, não sei, sinceramente, o que a teoria dos dois berços de Cheikh Anta Diop pode adicionar a este debate. Decerto ele postula uma maior propensão europeia à violência, ao colonialismo e ao racismo, mas, embora seus estudos tenham tido relevância e profundidade, o fato é que hoje encontram pouco respaldo dentro da comunidade científica (e não se confunda tal fato com um posicionamento subjetivo meu, por favor). Se a autora quiser atribuir essa perda de importância a algo que escape à apreciação meramente objetiva da sua obra, que o faça com boa argumentação e não com afirmações simplistas e agressivas, lembrando que a proveniência de Cheikh Anta Diop não lhe confere razão automática, e que atribuir violência aos europeus como resultado da sua própria predisposição genética é um pavoroso absurdo anti-científico, além de ser um preconceito equivalente ao racismo. Os europeus utilizaram argumento semelhante durante muito tempo para justificar o seu domínio violento sobre outros povos, inclusive formalizando tais pressupostos academicamente com o tão conveniente fatalismo do determinismo biológico que esteve na base da Eugenia. Assim justificaram o genocídio pela fome de milhões de indianos, por exemplo, e se convenceram de que o subdesenvolvimentismo estava fatalmente ligado aos povos dos trópicos pelo fator climático que, a grosso modo, fazia deles preguiçosos e inaptos à desenvoltura europeia. Não repitamos o erro, portanto. Espero que você não veja na reciprocidade vingativa uma virtude.

Em certo momento do seu texto, Gilza reserva mais um adjetivo aos brancos europeus: demônios. Também diz, um pouco antes, que a cultura de caça europeia (parte do erro histórico que ela estabelece anteriormente) tem íntima relação com a violência característica da cultura branca. Para ela, tudo o que há ou houve de nefasto no mundo teve única e exclusivamente origem branca, europeia. Por contraste, ela desenha a África como um paraíso, omitindo todo o histórico de conflitos étnicos e tribais datados de períodos pré-coloniais. Sim, a demarcação territorial forçada pelos colonialistas brancos durante o tempo em que invadiam e saqueavam a África agudizou as rivalidades pré-existentes, mas será que a autora realmente acredita que antes reinava paz sublime e duradoura? Uma especialista em África saberia que não foi bem assim.

A própria Gilza, sem perceber, faz alusão ao domínio e à exploração entre africanos ao se referir a Nitócris. As monarquias africanas também eram opressivas e socialmente injustas, fossem patriarcais ou matriarcais. Ademais, ela atropela novamente a história ao dizer que enquanto na África as mulheres reinavam, na Europa elas eram arrastadas pelos cabelos. Ora, nada pode ser mais caricato e mais falso do ponto de vista do rigor cronológico. Ela pega em diversos momentos distintos da história - alguns dos quais claramente caricaturados no imaginário popular - e os correlaciona como se tivessem sido perfeitamente paralelos em contemporaneidade. Só assim consegue passar essa imagem bisonhamente distorcida de que, enquanto na África reinava a paz e a justiça, os europeus ensaiavam entre si o que mais tarde aplicariam aos povos por eles colonizados.

Resta-me concluir que a autora, embora nos tente fazer acreditar que é conhecedora da história africana, ignora profundamente a cronologia dos fatos históricos - e ignora, inclusive, que a África é um continente enorme que não pode ser explicado por essa uniformidade tão reducionista. Ou então ela é maquiavelicamente desonesta e comete todos esses erros de propósito para forçar um entendimento corrupto de que o mal, a violência, a opressão e a tirania só existiam no seio dos povos europeus.

Infelizmente, a história africana pré-colonial não se desenvolveu sem desavenças e violência. Tal fato diminui a culpa do imperialismo europeu? De forma alguma. A barbárie perpetuada pelos colonizadores não tem justificativa ou atenuante plausível. O que eu exijo da autora é rigor, honestidade, razoabilidade, tolerância e autocrítica, elementos sem os quais não há debate.

Mas será que ela quer mesmo debate? Ou quer monólogo de aceitação automática e inquestionável? A construção da compreensão histórica é algo que temos de fazer necessariamente em conjunto, com a colaboração de todos os povos. Hoje, com distanciamento, temos ferramentas intelectuais e científicas para fazer releituras, reanálises, para reinterpretar e elaborar novas perspectivas que contemplem os anseios e os pontos de vista de todos os envolvidos e, sobretudo, dos povos que sempre foram silenciados. Isto não é um favor ou uma esmola que os brancos dão aos negros. Não! Isto é uma obrigação histórica e ao mesmo tempo uma obrigação filosófica, científica. Será que a autora respeita a ciência? Ou dirá que é apenas mais uma ferramenta de controle dos europeus? Faço esta pergunta porque comprovadamente a ciência tem sido a melhor forma de análise dos fenômenos naturais e humanos que criamos até então. Vai descartá-la? Se sim, preencherá sua lacuna com o quê? É preciso rigor. Não há validade em traçar qualquer paralelo entre as civilizações do Vale do Nilo e a ocidental se referindo a uma Europa em que essa mesma civilização ocidental ainda estava por surgir, e ainda sobre Nitócris, a historiografia não assegura que ela tenha de fato existido enquanto personagem histórica. Ainda que o tivesse, os escritos do próprio Heródoto relativamente a ela desconstroem o mito de um paraíso africano de mulheres emancipadas e povos vegetarianos ao relatar conspirações, assassinatos, perseguições, vinganças e um derradeiro gesto da suposta matriarca: o suicídio.

Não escrevo este texto para defender os brancos europeus e muito menos para exaltá-los. Não tenho qualquer motivo para fazê-lo e espero que a autora não seja desonesta a ponto de me associar a alguma conspiração que possa deambular em sua cabeça. Também não escrevo para persegui-lá. É bem provável que seja uma pessoa boa e decente que apenas tempera desmesuradamente os seus textos pela necessidade de desabafar. Não li atentamente outros textos do blog e portanto só posso criticá-la a partir do artigo que motivou a minha resposta. Não quero em momento algum cair em ad hominem e espero que ela também não caia na falácia de lógica circular arrebatando tudo o que eu digo com apelos impeditivos à argumentação consubstanciada. Ou seja, não diga que o meu propósito de te responder é querer dar lição, não diga que eu não tenho direito de opinar por ser um macho branco. Reivindico aqui o meu direito de participar na construção da política e da concertação. Será muito fácil para você entrar na lógica circular e dizer simplesmente que estou sendo racista ou que estou cumprindo o meu papel tipicamente branco. Pois bem, estou, como já disse, ciente do risco. Ainda assim, desejo que o meu texto provoque reflexão honesta. Se não na autora, em outra pessoa que o ler.

Na canção Por quem os sinos dobram, Raul Seixas diz: é sempre mais fácil achar que a culpa é do outro / evita o aperto de mão de um possível aliado / convence as paredes do quarto e dorme tranquilo / sabendo no fundo do peito que não era nada daquilo. A despeito de Raulzito ter sido homem e branco, seu contributo para a aculturação foi brilhante ao misturar música afro-americana (blues e rock seminal), música nordestina (forró) e até elementos místicos orientais (hinduísmo) - cuja religiosidade eu particularmente rejeito, como rejeito qualquer outro misticismo, sem no entanto deixar de apreciar a sua beleza poética. Alguém ousará acusá-lo de apropriação cultural? Eu diria que ele celebrou a diversidade numa amálgama aprazível. No entanto, aludo ao maluco beleza somente por causa desses versos em que ele sintetiza, talvez sem querer mas com muita acuidade, a alienação que os guetos ideológicos podem causar a grupos e a indivíduos. É fundamental que os movimentos sociais, sejam quais forem, estejam sempre abertos ao diálogo e sobretudo às críticas externas, por mais dolorosas e inconvenientes que elas possam ser. Certeza de infalibilidade é, além de ilusão, uma alavanca do autoritarismo.

Néscio é outro insulto de Gilza aos europeus, em um parágrafo no qual ela também os chama de medíocres, minimiza os termos europeus veganismo e especismo e fala da cultura rastafári pregadora de uma alimentação sem carne. Ora, de forma concisa, o vegetarianismo organizado filosoficamente teria surgido na Índia e chegado à Europa pelo pitagorismo. Sinceramente, não é um assunto que eu domine, mas o vegetarianismo moderno, que se estrutura a partir de uma forte base ética, é, sim, europeu. Será evidentemente correto dizer que outros exemplos existiram em distintas civilizações anteriores, mas foi a partir da britânica Anna Kingsford que (felizmente) temos o vegetarianismo como ele hoje se apresenta. Não dá para negar a influência cultural europeia - sim, em grande parte imposta pelo colonialismo - como fator determinante para que o “seu” vegetarianismo e não outro tenha predominado. É um tema interessante do ponto de vista filosófico, mas sem qualquer relevância objetiva no que diz respeito à causa em si. Já a sugestão de que o racismo, o sexismo e o especismo tenham origem europeia, fica difícil quantificar o absurdo. É mais do que altamente provável que todos eles, com outras roupagens, tenham acompanhado a humanidade desde as primeiras civilizações. A afirmação da autora não tem rigor e é muito mais uma provocação barata do que uma informação.

Antes de finalizar, eu queria muito abordar a questão da justificação religiosa para a morte de animais. É natural que uma pessoa que se diz pan-africanista de orientação garveysta, mulherista africana, afrocentrada tenha algum conflito filosófico na compreensão do veganismo em função do forte elemento religioso que utiliza ritualismo com a morte de animais. É compreensível certa divergência, tendo a autora pendido para o lado que representa a busca pela sua própria identidade cultural. Não considero elegante criticar algo tão pessoal que só ela própria poderá conseguir sentir. No entanto, uma coisa é a escolha pessoal e outra é querer justificar uma tradição com certos apelos. Nesse sentido, sou implacável: não há justificativa plausível, no meu entender, para a morte de animais em rituais religiosos, sejam quais forem. À luz da nossa ética moderna que concebeu o veganismo e à qual de alguma forma Gilza também está ligada, trata-se de um anacronismo. Podemos discutir aqui quem criou ou tenta impor essa ética, mas é inequívoco o entendimento que temos sobre o ato de matar, mesmo havendo quem utilize a religião para justificá-lo.

Um elo comum a muitas religiões - embora especialmente às monoteístas - é algo que Christopher Hitchens designou assertivamente como culto à morte. Sacrifícios, assassinatos, mutilações, com ou sem o prefixo auto, são elementos bem presentes nas religiões organizadas. Uma pessoa que defenda a matança de animais jamais será vegana. É incongruente acusar os europeus de serem violentos e atribuir pacifismo e sensibilidade aos africanos para depois rejeitar uma filosofia europeia pacífica e sensível justificando a violência de rituais africanos por ser praticada no contexto religioso. É uma enorme contradição. Independentemente da religião, da cultura, do povo e da etnia, tais práticas são abjetas e condenáveis, e refletem o egoísmo humano praticado da forma que lhe é mais conveniente para manter o culto à morte sacrificando não a si, mas a outro animal. Patético! Pouco importa a suposta distinta concepção de vida e morte, a tese aristotélica e a concepção africana se a prática de matança de animais se repete. Se as suas convicções, Gilza, sobre a cultura africana são superiores ao seu veganismo (ou como o quiser chamar - se houver algum termo não ocidental eu adoraria incluí-lo no meu vocabulário), isso é problema seu e só a si caberá decidir acerca, mas não venha acusar de racismo quem defende o direito dos animais à vida e à dignidade acima de qualquer tradição religiosa. Matar animais em rituais de Candomblé é tão errado e abominável quanto fazê-lo em uma tourada (a justificação é a mesma: tradição). Não é por ser uma tradição africana ou parte de uma concepção de unidade dos humanos com os animais que ela se torna aceitável. Os animais não têm nada a ver com as crenças e as superstições dos humanos.

Isto não significa, no entanto, que eu queira impor o veganismo ocidental a comunidades africanas ou a tribos indígenas. De práticas jesuítas você não poderá acusar-me. Não obstante, não tenho dúvidas da minha escolha entre o veganismo ocidental e práticas de sacrifício de animais por matrizes religiosas africanas ou de caça por ameríndios. Na minha concepção ética, o veganismo é superior do ponto de vista da sua validade moral; outros aspectos da cultura dos referidos povos serão igualmente superiores aos dos ocidentais, disso também não tenho qualquer dúvidas e eu poderia enumerar uma série deles. A questão do relativismo cultural é extremamente delicada e complexa, e eu não me sinto totalmente à vontade para aprofundá-la sem os devidos critérios de análise. Não sei quanto a si.

No dois últimos parágrafos, Gilza volta a ofender os brancos: militontos e bunda branca-talquinho, para em seguida aconselhá-los a estudar a sua própria história sem distorções. Achei esse conselho, no mínimo, sugestivo - uma enorme cara de pau. Se ela pode dar conselhos, eu também posso: autocrítica, cara Gilza, é-lhe imprescindível. O seu propósito teria muito mais compreensão caso fosse difundido com respeito, simpatia e rigor informativo. Mas se o seu objetivo for mesmo o de desfazer-se de tudo o que seja vestígio de cultura ocidental, há uma irresistível incoerência bem latente. Não consta que seu texto tenha sido originalmente escrito no idioma dos seus antepassados. Está esperando o quê para aposentar o português? É que esse boicote bem seletivo a elementos da cultura ocidental é muito conveniente e soa-me fortemente a hipocrisia.

Por fim, não morro de amores pelo Ocidente, mas espero que ele continue bem vivo e fortaleça cada vez mais o que tem de bom para oferecer à humanidade e aos animais, reinventando-se, corrigindo o que tem de errado e inclusive aprendendo com outros povos e culturas que merecem o mesmo respeito, nomeadamente a tão bela e diversa cultura africana, que também terá, por sua vez, muito a ensinar e a aprender. No começo desta carta, ao me apresentar como ruivo, informo que tenho sete dreadlocks. Talvez Gilza tenha passado toda a leitura pensando em me acusar de apropriação cultural. Eu sei que é bem provável que ela não aceite o que me motivou a tê-las, mas reforço-o mesmo assim: é uma sincera homenagem, no meu entendimento bastante simpática, ao que admiro na cultura africana. Claro que é algo muito pouco original, já que em certas subculturas europeias há muitos branquelos veganos que possuem dreads, ou no cabelo todo, ou apenas algumas na nuca, como no meu caso. Imagine, Gilza, que bando de violentos e néscios demônios e todos esses termos insultuosos que com afinco você julga adjetivá-los justamente.

Como cresci em Aracaju, a acarajé baiana esteve sempre presente nos bairros em que morei. Por ter vindo viver na Europa, fiquei quase vinte anos sem comê-la, até que um dia uma amiga gaúcha, cozinheira, preparou uma versão vegana, sem camarão, para meu total deleite. Recentemente, fui a um bar que serve algumas coisas típicas do Brasil motivado pelo seu anúncio de acarajé. Para minha tristeza, o vatapá não era vegano e acabei por comer um pastel de palmito e cogumelos. Adoro acarajé, como também adoro a versão vegana de tantos pratos europeus igualmente suculentos. Espero que a boa comida lhe alimente sempre, Gilza, e espero que a autocrítica também lhe seja um importante alimento filosófico. Exaltar uma cultura não implica ridicularizar outras, e o combate ao racismo e à imposição cultural colonialista/imperialista pode ser melhor feito em comunhão de esforços, admitindo aliados e boas doses de razoabilidade.

Saturday, December 30, 2017

Os 20 álbuns de 2017

Como já é costume de fim de ano, fica aqui esse apanhado dos vinte álbuns que mais visitaram os meus ouvidos em 2017. Um ano em que a música brasileira foi ainda mais soberana que no ano passado. Muitas lacunas da minha formação musical foram finalmente preenchidas e muitas revisitas foram empreendidas por este indivíduo entregue ao que desprezara. 2017 conciliou ritmo, batida e muita filosofia.

1 - Alucinação (Belchior)
2 - Duas Cidades (Baiana System)
3 - Da Lama Ao Caos (Chico Science & Nação Zumbi)
4 - Samba Esquema Novo (Jorge Ben Jor)
5 - Tábua de Esmeralda (Jorge Ben Jor)
6 - Acabou Chorare (Novos Baianos)
7 - Novos Baianos FC (Novos Baianos)
8 - Convoque Seu Buda (Criolo)
9 - Di Melo (Di Melo)
10 - Soltasbruxa (Francisco, El Hombre)
11 - Tijolo Por Tijolo (Braza)
12 - Fita Embolada Do Engenho - Rapadura Na Boca Do Povo (RAPadura)
13 - Seleção De Ouro Vol. I, II, III (Raíces De América)
14 - Gracias A La Vida (Tarancón)
15 - Afrociberdelia Chico Science & Nação Zumbi)
16 - Galana Livre (Rincon Sapiência)
17 - Automatic (The Jesus And Mary Chain)
18 -O Papa É Pop (Engenheiros Do Hawaii)
19 - Cabeça Dinossauro (Titãs)
20 - Racional Vol. I, II (Tim Maia)

Tuesday, May 9, 2017

O papel do indivíduo na destilaria de ódio


Este texto é o meu humilde contributo contra o reino da brutalidade que toma conta do Brasil e a esta altura, entre outras consequências, dá 15% de intenções de voto a Bolsonaro segundo as últimas pesquisas relativas às eleições presidenciais de 2018. Vivendo distante, é o que posso oferecer contra o pensamento binário, contra a intolerância e o ódio, contra a polarização irracional e contra a celebração da ignorância. Este texto não faz apologia a nenhuma ideologia e a nenhum partido e é apenas a crônica de um percurso em busca da afirmação racional. Penso que apoiar figuras como o possível candidato presidencial citado (e o pacote de brutalidade que inclui homofobia, sexismo, racismo, vingacionismo e violência institucional, autoritarismo, apologia à tirania e negação à filosofia política) não é um posicionamento dentro do espectro político-partidário, mas uma carência intelectual e/ou um desvio psicossociológico.

O apoio a elementos anti-humanistas e anti-democráticos é o resultado do irracionalismo com que as massas têm sido induzidas a se posicionar perante o confuso cenário político brasileiro pelo decisivo papel parcial dos meios de comunicação e por forças partidários irresponsáveis e comprometidas com vícios de poder que instauraram o caos e fizeram tremer as instituições e os próprios pressupostos iluministas. Tento resistir como posso ao festival de embrutecimento e essa resistência requer uma força interior descomunal, porque a tendência é a barbárie e geralmente encontro-me sozinho e em desvantagem face à avalanche de comunicação contaminada. Acredito, porém, que nós, os indivíduos participativos politicamente ou não, somos os principais responsáveis pela situação em que o debate tem sido desenvolvido e, por conseguinte, pela própria situação da política brasileira. Precisamos urgentemente de discernimento, razoabilidade, tolerância, capacidade crítica, sensibilidade, compreensão, equilíbrio e boa vontade. Todos nós. Da direita à esquerda, do ativista ao cidadão despolitizado, do anônimo à figura pública, do jornalista ao leitor e telespectador. Cada um de nós decide que tipo de contributo tem a oferecer. E este contributo é em grande medida um definidor de caráter.

Começarei contando um pouco da trajetória recente que segundo o meu entendimento construiu o pensamento que tenho a oferecer como, penso eu, contributo positivo.

Em 2007, ali à primeira esquina do passado, eu tinha outra vida. Todas as grandes transformações que me trariam a esta “estação” estavam ainda tendo o impulso seminal. A minha vivência dentro da cidade do Porto se limitava a uns poucos locais bem específicos que eram separados por profundas lacunas. Eu era um residente que desconhecia totalmente a cidade. No segundo mês daquele ano, fiz a minha primeira grande viagem sozinho. Cheguei a Praga depois de dois dias espremido num ônibus em virtude da minha já célebre fobia a aviões. Foram três meses na cidade responsável por um novo rumo nesta turbulenta existência. O motivo? Uma checa. Ai, as checas… Eu tinha uma atração inexplicável por elas - hoje sou muito mais eclético. Ao regressar da primeira de muitas visitas à mais bela das cidades, decidi pegar os únicos cinquenta euros de que dispunha e usá-los para pagar a inscrição a um exame de aptidões através do qual eu poderia ser admitido no ensino superior sem nunca ter acabado o secundário. Foi uma confusão enorme, mas o final foi feliz. Em Setembro eu era discente da Licenciatura em Geografia na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Isso pouco ou nada me significava à época. Hoje, sei que foi outra das grandes transformações que me acometeram. Antes, o “meu” Grêmio havia sido engolido na final da Libertadores pelo Boca Juniors e a tal checa viera a Portugal para fazermos uma viagem de norte a sul, ao estilo Reconquista, até ancorarmos no Algarve durante duas semanas ao expoente do delírio hedonista e praieiro (por não terem litoral, os checos alimentam um carinho um pouco especial demais pelo mar, digamos). Esse foi um período de grandes descobertas. Minha mente desabrochou substancialmente e o pendor cosmopolitano e humanista se impunha definitivamente.

As primeiras semanas como acadêmico foram horríveis. Eu não gostava do ambiente, das obrigações e das pessoas. Mas fazia um esforço tremendo para gostar. Foi mesmo uma meta traçada: ser volátil, às vezes ser um bom ator, ser tolerante e tentar relacionar-me da forma mais diversa possível para sair do gueto cultural no qual me havia fechado desde que descobrira o submundo do Punk. Outra coisa que aflorava no horizonte da minha mente era o pensamento lógico e aquilo que Carl Sagan chamou de espiritualidade científica. A verdade é que todas as ideologias estruturadas a partir da emoção são fundamentalmente dogmáticas. Todas! E o meu anarquismo não fugia à regra. Ademais, fechar-se em gueto é perigoso e condicionante. Quando todas as pessoas à nossa volta aplaudem aquilo que dizemos, começamos a acreditar seriamente que temos razão. E em ambientes ideologicamente homogêneos a razão se transforma em dogma. Acreditamos que estamos certos em absolutamente tudo. Passamos a explicar o mundo pela ótica da nossa ideologia e estamos deveras alienados para perceber que ela é uma nuance de um mundo complexo que nos obriga a um pensamento muito bem vacinado contra as contaminações dogmáticas dos ideais e sobretudo da cegueira que os guetos desenvolvem.

Não que devamos descartar as ideias. Eu continuo sendo um idealista. José Saramago dizia ser um comunista hormonal para explicar que era um idealista naturalmente por mais que tentasse não sê-lo. Não sei se o mesmo acontece comigo, mas ainda acredito que o anarquismo é a melhor ideologia (e metodologia) de organização social concebida pela mente humana. Por ter origem antrópica, ela tem suas falhas, suas incoerências. Como todas as outras. Absolutamente todas! O mundo é constantemente edificado a partir de ideais amalgamados. Toda a história humana foi construída assim. São os ideais que esculpem os trejeitos desse bloco bruto que somos inicialmente. Há pessoas com mais curvas esbeltas e há outras quadradonas. Mas não é desolador que toda a nossa história tenha sido construída bem mais pelas ideologias e superstições do que pelo pensamento lógico e pela ciência?

Não me entendam mal. Não defendo a supressão das emoções. Este que lhes escreve é um romântico inveterado cujos maiores atrasos de vida foram causados por excesso de sentimentalismo e da emotividade mais obstinada. Também não defendo uma sociedade controlada pela tecnocracia em sua atual acepção corrente. Já a acepção mais, digamos, coerente, ou a que ao meu ver melhor se adequa, se aproxima muito daquilo que concebo como uma sociedade baseada na racionalidade. Não defendo o tecnicismo burocrático de salão, insensível às aspirações populares. Defendo a técnica a serviço das comunidades em todo o seu leque de necessidades. Subsequentemente, isto significa a democratização da ciência, para que ela seja libertada dos salões elitistas e permita às camadas populares tomar decisões com base no conhecimento.

Mas regressando ao ano de 2007, após ter começado o curso acadêmico num período de grandes mudanças, encontrei num lugar inesperado a porta que se abria para o caminho de rigor e racionalidade no debate político. Posso dizer que a primazia da verdadeira filosofia política se iniciava naquele instante, ainda que sem sofreguidão, numa crescente que ao longo dos anos foi adaptando um anarquismo que alguns até podem chamar sincretista, não tão difuso mas expandido, abrangente e sobretudo trabalhado dentro da realidade do mundo, ao pensamento alinhado com o método científico, com a busca pelo equilíbrio emocional, pela razão e pela honestidade. Passei a perceber que nenhuma ideologia pode ser sobreposta à verdade por mais sublime que a consideramos ser.

O tal lugar inesperado não fazia parte do ambiente acadêmico e escondia-se entre as ondas tempestuosas da navegação virtual. Naquele ano, a rede social Orkut estava ainda no auge. Sua popularidade no Brasil a transformava em extensão dos meios de comunicação convencionais. A grande maioria dos conteúdos era desprezível e mesmo as “comunidades” que se propunham a debater política ou se fechavam em guetos ideológicos masturbatórios ou se transformavam em arenas de incessantes agressões ególatras em que as armas de combate eram clichês, mentiras e pensamento binário. O fenômeno de ódio político que hoje reina no Brasil já navegava a pleno vapor naquele momento seminal das redes sociais. Vasculhei todo o Orkut em busca de espaços de debate nos quais eu pudesse aprimorar a minha argumentação e o meu próprio pensamento. Estava disposto a debater quase tudo, até futebol e música, mas os grupos dedicados a esses temas eram formados apenas por bandos de adultos acriançados e verdadeiros analfabetos funcionais. Não havia nível de pensamento lógico e a escassez da semiótica era dramática. Até que um dia, em meio a dezenas de grupos, chamou-me a atenção um intitulado Geopolítica. O mundo vinha na esteira da invasão do Iraque e toda a nova configuração da ordem mundial se organizava sobre a arena global. Parecia-me que o nome do grupo designava um tema deveras propício para debates mais amplos, e, como estudante de Geografia que me havia tornado, o meu interesse por recursos naturais e relações internacionais era crescente, embora eu ainda quisesse debater ideais.

Durante anos limitei-me ao gueto ideológico e estava na hora de procurar um desafio intelectualmente mais rico: eu queria confrontar antagonismos para ser desafiado a evoluir a partir do estudo. Era chegada a altura das afirmações fundamentadas em detrimento dos achismos costumeiros. O grande mérito da comunidade Geopolítica era estabelecer o ambiente para o debate consubstanciado. Não eram todos que colaboravam, evidentemente. Das centenas de membros, apenas participava ativamente um pequeno punhado que não excedia as vinte pessoas. Como havia uma clara polarização ideológica, a moderação da comunidade precisava atuar, mas logo todos percebemos que ou desenvolvíamos debates construtivos com base na tolerância e na seriedade, ou estávamos apenas perdendo tempo em arroubos de baixaria egocêntrica. Foi com essa mentalidade que empreendemos um pequeno projeto político-filosófico que rendeu bons frutos a quem soube cultivá-lo. No que me toca, posso garantir que com ele aprendi na prática o valor da diversidade e do antagonismo como instrumentos de superação intelectual. Também aprendi o valor da honestidade, embora não tenha sido um aprendizado imediato. Todos precisávamos dar embasamento às opiniões, mas chegou uma altura em que era evidente a existência de “artigos” e “estudos” para todos os gostos e bastava apresentar aqueles que corroboravam o que defendíamos, como se já estivéssemos certos à priori e eles só servissem caso confirmassem o que dizíamos (ainda hoje, se alguém quiser acreditar, por exemplo, no terraplanismo, irá encontrar na Internet muito material defendendo essa baboseira - embora apenas no submundo das teorias conspiracionistas e sem qualquer validação de revisão de pares). Essa descoberta foi importantíssima inclusive para o meu percurso acadêmico, porque incutiu nele o espírito crítico e a ideia de que é preciso confrontar visões antagônicas para que se excluam mutuamente até que delas restem os resíduos validados. Isto é, aliás, espírito científico e a sua aplicação ao debate político foi o grande salto intelectual da minha vida por mais que a atuação no campo das ideias sempre implique alguma dose de emotividade.

A minha participação efetiva na Geopolítica duraria um pouco mais de dois anos, quase sempre com as mesmas pessoas. Certa feita, até Rodrigo Constantino cairia por lá com o paraquedas do seu ego. Foram poucos dias até a sua total exclusão do grupo motivada por agressões verbais contra a minha pessoa e contra membros de esquerda. Nem os membros de direita gostavam dele. De fato, seu habitual estilo raivoso e macartista contaminava com intolerância um espaço que se pautava pela camaradagem. Pouco tempo depois, o reaça mimado pseudo-libertário ganharia notoriedade na grande imprensa e alguns dos livros que utilizava para embasar suas opiniões, que eram os seus próprios (sim, ele se auto-citava!), se tornariam best-sellers alavancados por um cenário político rasteiro propício ao binarismo e ao ódio. Mas antes do ar fétido da sua (des)graça, já se tinham formado no grupo certas amizades que desafiavam a própria natureza das relações virtuais. Havia chegado uma altura em que todos tínhamos noção de que dependíamos uns dos outros para continuar empreendendo debates equilibrados e producentes e até criávamos “tópicos” exclusivamente para incrementar as convergências de indivíduos ideologicamente divergentes. Imaginem que um socialista e um liberal fossem politicamente incompatíveis mas se davam conta de que torciam para o mesmo clube ou gostavam das mesmas bandas. Coisas assim, para descomprimir.

A minha primeira discussão na Geopolítica, já no primeiro dia, teve como opositor (e alvo de pura raiva) um liberal chamado Diego, estudante de Economia. Inicialmente, eu o detestava. Era cínico, irônico e certeiro. Desdenhava da esquerda e dos socialistas de uma forma particularmente irritante. Mas ele passaria a ser o membro mais próximo de mim após a poeira baixar e a comunidade tentar se harmonizar. Havia outros, como a Je, o Eduardo e o Gilberto Mucio, que eram, respectivamente, uma carioca esquerdista e cristã, um socialista (talvez mais social-democrata) residente nos EUA e um rabugento leninista nordestino residente em Moscou. Como todos eram ideologicamente mais próximos a mim, não havia aquele sal a mais para temperar a relação. Concordávamos em quase tudo e estávamos sempre do mesmo lado nos grandes embates da comunidade, portanto não havia necessidade de trocar provocações relevantes entre nós.

Com Diego era diferente, porque ele me desafiava, me obrigava a estudar e a me superar. Creio que de alguma forma eu também lhe fazia o mesmo. E assim nos tornamos amigos. Quando o Orkut perdeu força, continuamos nossos duelos no Facebook, com a diferença de o fazermos em privado e não dentro de grupos. Posso dizer com toda a segurança que a compilação das nossas conversas sobre sistemas econômicos, conjunturas partidárias, geopolítica, movimentos sociais e direitos humanos daria pelo menos um grande calhamaço. De fato, um dos livros que já tenho finalizado e que ainda pretendo publicar foi em boa parte inspirado em reflexões surgidas a partir do desenvolvimento dos nossos debates. Decerto ainda sentimos certa ojeriza pelas ideias um do outro, mas também já admitimos derrotas. Aprendi com ele e acho que ele aprendeu comigo. Já lhe dei razão - a muito custo, claro, mas reconhecendo o valor da honestidade intelectual - e já tive razão reconhecida por ele. Percebemos que somos duas pessoas bem intencionadas com visões antagônicas de como concretizar essas boas intenções. Ele continua sendo liberal e continua desconfiando de tudo o que venha da esquerda. Hoje, é economista no Ministério da Fazenda. Eu continuo sendo socialista libertário e continuo desconfiando de tudo o que venha da direita e de grande parte da esquerda, embora esteja alinhado a ela pontualmente. Continuo com minha vida errante e tresloucada, sem lar, sem estabilidade. Hippie para uns, vagabundo para outros. O certo é que temos estilos de vida totalmente incompatíveis, mas nosso exemplo é uma prova de que é possível debater política sem ódio e é possível a convivência antagônica. Também mostramos que a diferença, utilizada sabiamente por quem tem um verdadeiro interesse na constante auto-superação, é uma dádiva filosófica. Não conheço Diego pessoalmente, mas temos uma amizade à distância há dez anos que há tempos transborda as conversas políticas e também se envereda por questões da nossa vida. Às vezes, quando perdemos motivação ou sentimos frustração pelo rumo da política, ficamos semanas sem nos comunicar, mas logo voltamos a falar nem que seja sobre acontecimentos do nosso foro pessoal alheios às ideologias. É bem provável que nos conheçamos pessoalmente quando ele finalmente visitar a Europa. E quando isso acontecer beberemos cerveja em um bar ou iremos a um concerto de Rock. E vamos trocar nossas habituais farpas políticas em meio a goles e brindes, porque somos pessoas razoáveis e exploramos as nossas convergências. Mesmo ideologicamente, não discordamos de tudo a 100% como seria de se esperar da relação entre um liberal de vida mais pacata e um socialista “porra-louca”. Em algum momento desse meu percurso recente eu desenvolvi a tolerância plena e aprendi a conviver com todo o tipo de pessoas, quase sempre trocando conhecimentos e vivências. Ser fascinado pela diferença é talvez a grande virtude que reconheço em mim próprio e entristece-me observar que a grande maioria das pessoas sequer se dá ao trabalho de buscar a mera compreensão, que dirá tal fascínio.

Recentemente, limitei a minha participação em debates em virtude do baixo nível dos mesmos. É difícil compreender como as pessoas continuam satisfeitas com simplismos e clichês em meio a tanta informação acessível. A preguiça intelectual é uma das causas da pobreza argumentativa e da pequenez espiritual, mas o ódio fomentado pela desinformação dos grandes meios de comunicação também se destila nesses ambientes de intolerância e polaridade. Perante a destilaria de ódio em que se tornou essa representação da realidade chamada Internet - e que muitas vezes a transborda e inunda a realidade objetiva -, a nossa decência está na contracorrente, na subversão dessa dinâmica alienante. Estamos falando de um veículo de comunicação que nos dá certo protagonismo e em que somos ativos comunicadores. O caráter do nosso contributo nessa aldeia global virtual diz muito daquilo que somos e daquilo que queremos para o nosso mundo real. Não há virtude em combater ódio com ódio, violência com violência e mentira com mentira. Ver no opositor uma figura humana é um princípio de tolerância básico que hoje parece miragem. Mas a plenitude da racionalidade e do humanismo está no exercício da compreensão e da tolerância. Ele pode ser árduo, mas é esse esforço que elucida a nobreza da nossa intencionalidade.

A minha alusão a Bolsonaro no começo do texto não foi um mero posicionamento político. Não o considero um representante genuíno de espectros político-partidários e muito menos de ideologias mais ou menos formais. Bolsonaro é um atalho de todos os que querem evitar o percurso do raciocínio e da filosofia política. É por isso que a grande maioria dos seus seguidores é gente despolitizada. Ou que pelo menos foi despolitizada até há uns dias, e que agora difunde verdadeiros discursos de ódio com afinco. Bolsonaro é um canalizador do ódio, um negociador do medo. É a caricatura do atual cenário político brasileiro exatamente por representar a negação à política e a celebração da ignorância como formas de virtude. Geralmente, seus apoiantes nada têm a dizer de substância argumentativa. Seus discursos são rasos e o máximo que conseguem fazem em meio a tanto clichê é uma grotesca simplificação da realidade. E essa simplificação reforça a polarização que por sua vez incrementa o ódio. A própria direita politizada o despreza. Diego o despreza. E é preocupante que o espaço da direita brasileira esteja sendo ocupada pelo extremismo anti-humanista, porque a política é a arte do diálogo e essa gente já mostrou que não está interessada nisso. Eles representam a brutalidade objetiva contra a racionalidade e o equilíbrio. Não é à toa que agora surjam figuras politicamente ignorantes, como os futebolistas Felipe Melo e Jadson, declarando-lhe apoio e arrastando assim uma multidão de preguiçosos que prefere seguir o atalho do imediatismo irracional, evitando o “fardo” do exercício intelectual lógico e honesto baseado no estudo, na leitura, no reforço do discernimento e da observação crítica.

É com moderado orgulho que celebro os dez anos de boa amizade com Diego, o liberal fanfarrão e irritante, porque estou convicto de que não fizemos mais do que a nossa obrigação: se exigimos espaço em algum tipo de debate, pensar com coerência e razoabilidade é o mínimo a que estamos obrigados. Foram anos em que quanto eu mais aprendia, mais me ia apercebendo do quanto ainda não sei. E isso se deu em grande parte graças à abertura da minha mentalidade para compreender as ideias diferentes e inclusive reconhecer quando nelas está a razão. Seria tão melhor para todos nós se explorássemos as ideias que constroem o mundo com a mesma humildade de um astrônomo cosmologicamente insignificante que explora o vasto universo sedento por conhecimento e consciente da sua ignorância.